Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
A gana pela liberação da caça no Brasil não cessa. Talvez a miopia histórica que aflora na política também tenha sua vertente ambiental em um povo que pouco estuda sua própria história. Não ter memória, não ter história, nos condena a repetir os erros do passado. A Lei nº 5.197/1967 foi editada visando frear o massacre à biodiversidade nacional que ocorria pela caça, inclusive a caça comercial.
De 1967 para os dias atuais, tivemos em 1998 a edição da Lei nº 9.605 que consolidou em seu texto os dispositivos que tipificam os crimes ambientais. Ela também solucionou uma antiga piada sobre o jacaré. Quem cuida do jacaré? Se estiver na terra era do IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, mas se estiver na água seria de responsabilidade da Sudepe – Superintendência do Desenvolvimento da Pesca. Ambas as instituições, embora não apenas elas, se uniram para formar o Ibama em 1989 e o jacaré passou a ser de responsabilidade desse órgão, independentemente de estar na água ou na terra – mais lógico, né?
A solução da Lei nº 9.605/1998 para esse tipo de problema foi estabelecer uma distinção entre recurso pesqueiro e o restante da fauna. De acordo com o artigo 36, os peixes, crustáceos (lagosta e camarão, por exemplo) e moluscos aquáticos (polvo, lula, mexilhão), além dos vegetais hidróbios (que vivem na água), seriam recursos pesqueiros, excetuadas as espécies ameaçadas de extinção.
“Artigo 36 – Para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora.”
Essa distinção é importante em razão do diferente grau de proteção, no ordenamento jurídico brasileiro, dispensado a cada um dos dois grupos de animais. Em um entendimento simples: você pode pescar (desde que na época, com os petrechos e espécies permitidos), mas não poderá caçar (a menos que tenha autorização específica, como para a caça científica). Assim, tornar todos os animais aquáticos como espécies sujeitas à pesca, na prática, significa liberar a caça de todos eles.
Principalmente a partir da liberação da caça de javalis – que é ou deveria ser uma caça de controle –, os projetos de lei visando a liberação da caça no Brasil têm sido mais frequentes que antes. No entanto, quase a totalidade da população brasileira é contra a caça. Segundo o Ibope, a rejeição à liberação da caça é de 95% entre mulheres e de 90% entre os homens. Nos grandes centros urbanos (capitais e periferias), a rejeição é de 95%, enquanto nas cidades do interior, 91%. Caso a análise seja por região, 94% dos moradores do Sudeste são contra, seguidos por 93% no Sul, 92% no Norte e Centro-Oeste, e 91% no Nordeste.
Dessa forma, os Congressistas que apresentam projetos de lei de liberação à caça no Brasil estão contra a sociedade brasileira. Não obstante, o grupo minoritário favorável à caça permanece ativo e no propósito de poderem se divertir mediante o sofrimento dos animais. A última investida pela liberação da caça reside na tentativa de transformar a todos os animais aquáticos em passíveis de serem pescados. Caso esse intento obtenha sucesso, animais como jacarés, botos, tartarugas-marinhas, tracajás e até peixes-boi ou baleias poderão ser tratados como hoje o são os peixes. Ou seja, poderão ser capturados e vendidos. Na prática, serão caçados. Não que os peixes não mereçam melhor proteção. Eles merecem. Mas ao invés de protegê-los, estamos estendendo a outros animais a forma absurda como exploramos os peixes, crustáceos e moluscos. Os rios e oceano estão se tornando um deserto – apenas não percebemos por que os peixes morrem em silêncio e a destruição é invisível, pois ocorre debaixo d´água.
A Portaria nº 53/2021 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), de forma insidiosa, tenta liberar a caça no Brasil ao propor que todos os animais aquáticos usados na alimentação humana sejam tratados como recurso pesqueiro. Na prática, pescaríamos jacarés, botos, tartarugas-marinhas, baleias, entre quaisquer outros animais aquáticos que pudessem ser comidos.
Portaria nº 53, de 23 de março de 2021, que está em consulta pública durante 30 dias a partir de sua publicação.
“Minuta de Instrução Normativa
(…) Artigo 2º – Para fins desta Instrução Normativa, consideram-se:
I – aquicultura familiar: quando praticada por unidade unifamiliar, nos termos da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006;
II – pescado: os peixes, os crustáceos, os moluscos, os anfíbios, os répteis, os equinodermos e outros animais aquáticos usados na alimentação humana;” (…) – grifo nosso
Inicialmente, como pode ser observado, enquanto a lei limita a pesca aos peixes, crustáceos e moluscos, a Portaria nº 53/2021 a estende a todos os animais. Ou seja, a portaria extrapola o previsto na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998). Mas não contraria apenas a ela: a Lei nº 5.197/1967 também é afrontada, pois em seu artigo 2º está proibida a caça profissional que se define pelo comércio do espécime ou parte do espécime caçado.
Entrando em vigência essa nova normativa do MAPA, enquanto desfruta de um dia na praia, você e sua família terão o desprazer de ver uma tartaruga arpoada no pescoço, se afogando em seu sangue, ser arrastada para areia para ser comercializada. No mercado, encontrarão carne de jacaré, de boto-vermelho e cinza ao lado da carne de peixe-boi e, em determinada época do ano, também de baleia. Tudo perfeitamente legal e autorizado pela normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que hoje define as regras de pesca no Brasil sem a participação de instituições ambientais. Observe que os animais aquáticos caçados, me desculpem, “pescados” serão comercializados livremente.
Outra questão interessante da normativa se refere ao fato de citarem especificamente equinodermos. Equinodermos é um grupo de animal do qual fazem parte a estrela-do-mar, o ouriço-do-mar, o pepino-do-mar, entre outros. São todos animais marinhos. Como você deve ter percebido, não fazem parte do cardápio dos brasileiros. Então por que o MAPA edita uma normativa citando-os especificamente? Porque os pepinos-do-mar, por exemplo, são uma iguaria degustada em países asiáticos e o Brasil já combate a caça, a matança e tráfico desses animais para lá. Afinal, na balança entre destruir nossa biodiversidade aquática e as papilas gustativas de endinheirados asiáticos prevaleceu a ética, a moral e a biodiversidade nacional. Porém, caso a aberrante normativa seja aprovada, os pepinos-do-mar poderão ser caçados, desculpem, “pescados” para abastecerem finos pratos do outro lado do mundo. Ah! Por que querem os pepinos-do-mar brasileiros? Por que eles são mais saborosos? Não, porque os animais são raros ou já foram eliminados em vários locais de seus próprios mares.
Essa é apenas mais uma tentativa de caçar os animais silvestres no Brasil. Não é a primeira e nem será a última. Para se manifestar contra ela, acesse o e-mail artesanal.cgpa@agricultura.gov.br e mande sua contribuição, sua proposta de acordo com o padrão disposto no artigo 3º da Portaria nº 53/2021.
“Artigo 2° – A presente consulta pública intenciona permitir a ampla divulgação da proposta de Instrução Normativa, em anexo, de forma a possibilitar a manifestação de órgãos, entidades representativas, pessoas físicas e jurídicas interessadas no tema.
Artigo 3°- A manifestação de que trata o artigo 2° desta Portaria deve ser apresentada no formato de planilha editável, conforme exemplo abaixo, devendo ser enviada para o e-mail: artesanal.cgpa@agricultura.gov.br.”
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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