Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) é um órgão regulador, vinculado ao Ministério da Saúde, que exerce o controle sanitário de todos os produtos e serviços nacionais ou importados submetidos à vigilância sanitária, tais como medicamentos, alimentos, cosméticos, saneantes, derivados do tabaco, hemoderivados e serviços de saúde [1]. Em 17 de janeiro de 2021, um dia histórico para o povo brasileiro, cinco diretores da agência aprovaram, por unanimidade [2], o uso emergencial de duas vacinas contra a Covid-19: a CoronaVac, desenvolvida em parceria entre a Sinovac Biotech, da China [3], e o Instituto Butantan, de São Paulo, e a vacina produzida em parceria entre a Universidade de Oxford, Inglaterra, a biofarmacêutica AstraZeneca e a Fiocruz, do Rio de Janeiro [4].
No próprio dia da aprovação do uso emergencial das vacinas no Brasil, pouco mais de cem pessoas já foram vacinadas, em ação promovida pelo governo do estado de São Paulo, com utilização da CoronaVac [5]. Com isso, finalmente o Brasil se juntou ao plantel de mais de cinquenta países que começaram a imunizar a população.
Vacina é uma preparação biológica que fornece imunidade ativa à uma doença em particular. Tipicamente, a vacina contém um agente que se assemelha a um microrganismo causador de doenças, sendo muitas vezes produzida a partir de formas enfraquecidas ou mortas do micróbio, suas toxinas ou uma das suas proteínas de superfície. Esse agente estimula o sistema imunológico do corpo receptor a reconhecê-lo como ameaça e destruí-lo, sendo que, depois, o organismo infectado pode mais facilmente reconhecer e destruir qualquer um desses microrganismos. A administração de vacinas é chamada vacinação, que é o método mais eficaz de prevenção de doenças infecciosas. A imunidade generalizada devido à vacinação é responsável pela erradicação e controle de muitas doenças [6]. Na Medicina Ocidental, a primeira vacina foi desenvolvida no século 18, contra a varíola [7].
Embora desde a infância as vacinas façam parte da vida de quase toda a população humana do planeta, existem aqueles que renegam seu benefício. A tão almejada vacina contra a doença transmitida pelo novo coronavírus, que forçou mudanças drásticas em nosso modo de vida, causa gigantescos prejuízos econômicos e, acima de tudo, infelizmente já ceifou a vida de mais de dois milhões de humanos, é veementemente rejeitada por negacionistas da Ciência. Em uma breve incursão às redes sociais da internet é possível se deparar com quem acredite em teorias conspiratórias mirabolantes acerca da vacina contra a Covid-19, incluindo a “implantação de microchips de rastreamento”, o “controle mental”, a “transmissão de HIV” e outras sandices.
Geralmente os que acreditam nessas teorias conspiratórias são também terraplanistas e criacionistas, formando o pacote completo do negacionismo. Nos tempos de escola, quando se estudava a Revolta da Vacina, ocorrida no início do século 20, eram comuns entre os estudantes questionamentos acerca da capacidade intelectual das pessoas daquela época. “Caramba, como o povo podia ser tão burro?”, perguntavam-se frequentemente, sempre em meio a gargalhadas. Bom, diante do que acontece nos dias de hoje, em que há gente que não quer se vacinar contra a Covid-19, as piadas que ironizam e ridicularizam o pessoal do início do século passado deixam de ter tanto sentido.
A Revolta da Vacina é exatamente o ponto em que entram os insetos na nossa conversa. Ocorrida de 10 a 16 de novembro de 1904, a Revolta da Vacina foi um motim popular na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Seu pretexto básico foi uma lei que determinava a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. À época, o Rio de Janeiro sofria com sérios problemas de saúde pública e doenças como varíola, peste bubônica e febre amarela assolavam a população. O médico Oswaldo Cruz assumiu, em 1903, a Diretoria Geral de Saúde Pública, cabendo a ele a campanha de saneamento da cidade que visava erradicar as principais doenças. Assim, em junho de 1904, o governo fez uma proposta de lei que tornava obrigatória a vacinação, o que gerou debates exaltados entre legisladores e a população. Apesar da forte campanha de oposição, a lei foi aprovada no dia 31 de outubro. A equipe de Oswaldo Cruz enfrentou a febre amarela, atacando a doença através da eliminação dos mosquitos e pelo isolamento dos doentes em hospitais, mas o combate à varíola, por sua vez, dependia da vacinação, o que causou grande irritação popular [8].
A febre amarela é uma doença viral aguda que apresenta, na maioria das vezes, sintomas que incluem febre, calafrios, perda de apetite, náusea, dor de cabeça e dores musculares, principalmente nas costas. Em alguns, após a melhora dos sintomas, a febre regressa, aparecem dores abdominais, lesões no fígado causam icterícia e aumenta o risco de insuficiência renal. O vírus da febre amarela infecta apenas seres humanos e outros primatas, além de várias espécies de mosquitos. É transmitido aos humanos pela picada de um mosquito fêmea infetado. Nas áreas urbanas, a transmissão se dá, principalmente, por mosquitos Aedes aegypti (Diptera: Culicidae) [9], espécie introduzida aqui no Brasil, procedente da África [10].
Por ano, a febre amarela causa, em média, 200 mil ,infeções e 30 mil mortes, cerca de 90% das quais na África [11]. É doença comum também nas regiões tropicais da América do Sul, inclusive o Brasil, mas não na Ásia [9]. A doença teve origem na África, de onde se espalhou para a América através do comércio de trabalhadores escravizados no século 17 [10] [12]. Desde 1942, a febre amarela é considerada erradicada em áreas urbanas do Brasil, mas casos em áreas rurais têm sido confirmados desde então. No início de 2017, ocorreu um novo surto de febre amarela no Sudeste brasileiro, causando dezenas de mortes [13].
A febre amarela é a única arbovirose (doença causada por vírus transmitido por artrópodes, quase sempre insetos) que tem uma vacina profilática. A vacina surgiu em 1937 [14] e está na Lista de Medicamentos Essenciais da OMS (Organização Mundial de Saúde), que inclui os medicamentos necessários mais eficazes e seguros para a saúde pública [15]. A vacina pode ser usada para controle de surtos da doença e é aplicada por injeção no músculo ou sob a pele. Geralmente é segura, eventualmente com efeitos colaterais leves, como dor de cabeça, dores musculares, dor no local da injeção, febre e erupções cutâneas [16].
Outras vacinas contra viroses transmitidas por mosquitos estão em processo de desenvolvimento. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais estão produzindo o que pode ser a primeira vacina diretamente contra o mosquito Aedes aegypti. Com isso, a vacina poderá prevenir outras doenças transmitidas pela espécie, como zika, dengue e chikungunya. Quando estiver plenamente desenvolvida, essa vacina vai interferir nas populações de Aedes aegypti, resultando no bloqueio da transmissão dos vírus pelo mosquito. As pessoas vacinadas produzirão anticorpos contra os mosquitos e, a partir disso, as fêmeas que as picarem colocarão menos ovos ou mesmo morrerão logo após a picada, quebrando a cadeia de transmissão [17].
Especificamente contra a dengue, há vacinas em testes clínicos desde 2013 e que usam técnicas muito similares às de algumas vacinas para Covid-19. Entretanto, as vacinas contra a dengue não são consideradas como de interesse global, pois o vírus da dengue causa problemas de saúde pública em países que, em sua grande maioria, estão fora do eixo América do Norte e Europa. Como a dengue assola basicamente países tropicais e subtropicais nos continentes asiático, africano e na América Latina, e ainda por cima em períodos mais específicos do ano, isso faz com que as vacinas não sejam prioritárias em termos político-sociais e econômicos.
Apesar dessas dificuldades, já existe uma vacina contra a dengue licenciada para uso humano, a Dengvaxia. Trata-se de uma vacina tetravalente (ou seja, contra os quatro sorotipos do dengue), desenvolvida com o vírus atenuado e fabricada pelo laboratório francês Sanofi Pasteur. Essa estratégia de imunização é a mesma utilizada por pesquisadores do Instituto Butantan, que desenvolveram a vacina Butantan-DV, que teve os resultados dos testes clínicos da fase 2 publicados recentemente. A Butantan-DV gerou segurança e imunogenicidade em adultos que participaram do estudo, realizado de novembro de 2013 a setembro de 2015, com 300 voluntários. O uso da vacina tetravalente Dengvaxia vem sendo recomendado pela OMS apenas para pessoas que já tiveram contato com o vírus, sendo ela utilizada como reforço. Dessa forma, antes da pessoa ser vacinada, ela precisa ter um teste sorológico positivo contra o vírus dengue [18].
Mordidas e picadas de insetos são incômodas para quase todo mundo. Porém, muito mais que uma simples irritação ou uma dor local, para algumas pessoas podem representar um perigo real, chegando a ser perigosas aos que têm alergias específicas. Nesses casos, há possibilidade de aplicação de vacinas para amenizar os quadros alérgicos. Esse tratamento, chamado imunoterapia, consiste na aplicação de vacinas com doses crescentes do alérgeno causador do problema, o que treinaria o sistema imunológico do paciente. A OMS recomenda a imunoterapia a pacientes com reações graves (anafiláticas) a insetos (especialmente abelhas, vespas, marimbondos e formigas), mas a indicação deve ser criteriosa e voltada àqueles que já recebem os tratamentos convencionais [19].
A sabedoria popular conhece na prática, muitas vezes de modo doloroso, que existem larvas de insetos da ordem Lepidoptera, as chamadas lagartas, que causam urticância. Algumas dessas lagartas podem ter importância médica, especialmente em pessoas com sensibilidade específica ou predisposição a alergias. Nessa categoria enquadram-se as lagartas de espécies do gênero Lonomia (família Saturniidae), potencialmente perigosas e encontradas no Brasil.
Conhecidas popularmente como taturanas, essas lagartas têm corpo recoberto por cerdas em forma de pequenos “pinheiros”. Curiosamente, os adultos são mariposas não muito chamativas, em oposição às lagartas, de cores vívidas. Essas taturanas costumam se camuflar em troncos de árvore, especialmente nos períodos de calor e chuva, muitas vezes agrupadas em colônias. Acidentes com Lonomia são potencialmente graves, pois a pilosidade tem propriedades urticantes e algumas espécies são letais, como a taturana-oblíqua, Lonomia obliqua. O toque nessas taturanas pode provocar hemorragias, insuficiência renal e até levar à morte. O Instituto Butantan é o único produtor no mundo do soro antilonômico, que neutraliza os efeitos do veneno dessas lagartas [20].
Ainda com relação às lagartas, o líquido que corre pelo corpo de tais insetos pode ser importante aliado no desenvolvimento de vacinas contra a ação de bactérias, fungos e vírus. Esse líquido presente no interior do corpo dos insetos e alguns outros invertebrados é denominado hemolinfa, um fluido cuja função corresponde à do sangue. Segundo pesquisas realizadas no Instituto Butantan, a hemolinfa presente em lagartas de duas famílias apresenta potencial para reduzir a ação de micro-organismos no corpo humano. As pesquisas incluem a própria Lonomia obliqua e, mais recentemente, vem sendo estudada a ação antiviral da hemolinfa de lagartas da família Megalopygidae [21], também urticantes, já tendo se comprovado que a substância encontrada consegue neutralizar o vírus Influenza H1N1, além de tornar duas mil vezes menor a replicação dos picornavírus (grupo que inclui o vírus do resfriado comum) e 750 vezes menor a do vírus do sarampo [22].
O fato é que nunca se falou tanto de Ciência nas redes sociais quanto nos últimos tempos. Até mesmo nas conversas em que não há menção explícita, estamos constantemente discutindo as consequências e resultados do desenvolvimento científico. Fala-se muito da eficácia das vacinas contra a Covid-19, de sua efetividade, das suas diferentes escolhas e tempos de desenvolvimento, dos laboratórios e países que as produzem… Algo inédito, pois até outro dia ninguém discutia isso em relação a qualquer vacina. E como é bom ver, no centro dessas discussões, instituições brasileiras de notório saber científico, com as quais podemos contar.
Mesmo que você não se dê conta, as instituições científicas estão lá, anonimamente, pesquisando formas de produzir e divulgar conhecimento, de preservar a biodiversidade e os recursos naturais, de amenizar alergias e curar enfermidades, de melhorar a vida de todos. Apostar na Ciência é e sempre será o melhor caminho, até mesmo em tempos de opiniões politizadas e tendenciosas – aliás, principalmente nestes tempos. Por isso, quando chegar a sua vez, confie nos cientistas e tome a vacina contra a Covid-19. Faça isso pensando na sua saúde, na de seus entes queridos e, acima de tudo, na coletividade. A história nos mostra que o caminho da Ciência é o caminho correto.
Referências
[1] Calciolari, Ricardo (2008). O poder regulamentar das agências em matéria sanitária. Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 103, p. 893-927.
[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/por-unanimidade-anvisa-aprova-uso-emergencial-de-vacinas-contra-covid
[3] https://www.thelancet.com/article/S1473-3099(20)30843-4/fulltext
[4] https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/42735/1/Boletim_Internacional_julho_2020.pdf
[5] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/01/17/apos-aprovacao-da-anvisa-governo-de-sp-aplica-1a-dose-da-coronavac-antes-do-inicio-do-plano-nacional-de-vacinacao.ghtml
[6] https://www.who.int/teams/immunization-vaccines-and-biologicals/strategies/global-vaccine-action-plan
[7] Van Sant, J.E. 2008. The Vaccinators: smallpox, medical knowledge, and the ‘opening’ of Japan. Journal of the History of Medicine and Allied Sciences, v. 63, n. 263(2), p. 276–279
[8] Carvalho, José Murilo. 2005. Os bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi. Companhia das Letras
[9] https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/yellow-fever
[10] https://faunanews.com.br/2020/06/17/o-mosquito-o-besouro-e-a-efemerida-que-vieram-da-africa/
[11] Tolle, M.A. 2009. Mosquito-borne diseases. Current Problems in Pediatric and Adolescent Health Care, v. 39, n. 4, p. 97-140.
[12] Oldstone, Michael. 2009. Viruses, plagues, and history: past, present and future. Oxford University Press
[13] https://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/secretaria-de-saude-de-minas-confirma-23-mortes-por-febre-amarela.ghtml
[14] https://rupress.org/jem/article/204/12/2779/46594/Yellow-fever-and-Max-Theiler-the-only-Nobel-Prize
[15] https://www.who.int
[16] https://www.who.int/wer/2013/wer8827.pdf?ua=1
[17] https://www.blog.saude.gov.br
[18] https://www.uol.com.br/vivabem/colunas/gustavo-cabral/2020/10/28/por-que-vacina-contra-dengue-ainda-nao-foi-licenciada-e-a-da-covid-19-sera.htm
[19] https://saude.abril.com.br/blog/experts-na-infancia/vacina-contra-alergias-beneficios-limitacoes-e-indicacoes/
[20] https://www.facebook.com/ButantanOficial/posts/3322696701104061/
[21] https://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2013/12/09/interna_tecnologia,477315/lagartas-sao-usadas-na-busca-por-novas-vacinas.shtml
[22] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2013/12/02/interna_ciencia_saude,401218/substancias-em-lagartas-podem-neutralizar-virus-h1n1-segundo-pesquisadores.shtml
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