Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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O título da coluna de hoje é uma sigla na língua inglesa e significa “Análise de Risco de Doença” ou Disease Risk Analysis. Esse tema já foi abordado aqui algumas vezes, porém, quando experimentamos na pele um surto de doença com animais silvestres em recuperação, a situação passa a ficar crítica e toda a atenção do mundo no assunto é pouca.
Uma das muitas críticas feitas a projetos de soltura de animais silvestres é a falta de cuidado com a avaliação sanitária de plantéis em processo de reabilitação. Mas como já também escrevemos repetidas vezes que soltura de animais não é, e nem pode ser, uma ação aleatória, apresentamos aqui um roteiro para auxiliar na construção de uma correta avaliação do nível de saúde dos animais destinados à soltura.
Considerando que existem vários protocolos possíveis, hoje vamos abordar um template, ou seja, um modelo que pode ser preenchido pelo responsável pela ação de soltura de forma customizada com os dados do interessado. O documento foi originalmente desenvolvido pelo Zoológico de Auckland (Nova Zelândia) a pedido do Grupo de Especialistas de Planejamento em Conservação (GPSG), conforme proposto por Jakob-Hoff et al (2014) IUCN-SSC/OIE, no documento Manual of Procedures for Wildlife Disease Risk Analysis.
A figura a seguir, retirada do documento, apresenta uma sequência lógica de passos para avaliação da situação sanitária de um grupo de animais silvestres destinados à soltura.
Passo 1 – Descreva o problema
Considerando a situação pelas quais podem passar animais destinados à soltura, seja por questão de tráfico, acidente ou outros. é importante ter em mente que além do trauma direto, o estresse no transporte até um centro de triagem e de reabilitação (Cetras) ou para uma área de soltura é altíssimo. Portanto, é preciso olhar com muita atenção, mesmo que não sejam observadas alterações evidentes nos animais. O ponto mais importante é criar uma rotina de registro desde a chegada dos animais; um registro padronizado que permita a comparação entre outros lotes.
Passo 2 – É preciso identificar a causa do problema
Para atender esse passo, é preciso já ter registrado dados de peso, score corporal, se houve ou não mortalidade no lote e, se houve mortalidade, qual a proporção; qual a frequência. Outro ponto que não pode faltar é a necropsia dos animais que venham a óbito. Na prática, essas não são questões fáceis de responder, já que é preciso ter uma infraestrutura mínima, tal como um freezer para congelamento de carcaças, um local para armazenamento dos dados coletados como fotos e anotações, e um local para coleta de amostras biológicas e estocagem delas até o processamento por laboratório de análises veterinárias. Outro aspecto dessa etapa é que, forçosamente, é preciso acompanhamento veterinário especializado em fauna silvestre e, dependendo da região do país, isso torna-se um outro grande desafio.
Passo 3
Com todas as informações coletadas, é preciso fazer uma avaliação de risco: o problema identificado é contagioso ou foi pontual e restrito a um indivíduo? É um problema que poderá se estender ao ambiente quando o animal for solto? É um problema que afetará os descendentes do animal solto? Ainda, se o risco do cenário crítico se estabelecer é alto, médio ou baixo?
A melhor forma de responder essas perguntas é criar uma matriz de riscos, em que se combinam informações quantitativas e qualitativas sobre um determinado ponto e depois elencados os riscos, do maior até o menor. É preciso também estabelecer estratégias de mitigação para os riscos elencados.
Parece meio complicado, não é? Mas complicado mesmo é observar mortalidade contínua em lotes de soltura, principalmente se forem lotes mistos, como é mais comum na reabilitação de passeriformes.
Passo 4 – Gerenciamento do risco
Um problema muito comum na soltura é a dificuldade de gerenciar o risco simplesmente porque as etapas anteriores não foram bem-feitas ou até nem foram realizadas. No caso de uma soltura bem planejada, e para um bom gerenciamento, é preciso dividir os riscos em probabilidade de ocorrência. Uma outra consequência dessa etapa é que ela envolve o planejamento de ações, o que nos leva ao último passo, o de número 5, que é o de implementação e revisão contínua dos protocolos criados a partir dos dados obtidos e das análises realizadas, com descrição das ações, frequência, responsável pela execução, forma de mensuração de sucesso e data para reavaliação.
Finalmente, durante toda a análise de risco, é necessária a ação de comunicar os riscos levantados a todos os atores envolvidos. E esse, na minha experiência, é talvez um dos aspectos mais falhos nas solturas que já realizei ou acompanhei, pois, em vez de um ambiente de aprendizado, muitas vezes existe um ambiente de censura prévia para as ações de soltura, especialmente se considerarmos todos os tipos de atores envolvidos: Polícia Militar Ambiental, funcionários públicos das várias esferas de governo e técnicos com diferentes formações, sem contar financiadores e apoiadores interessados. Situação que não raro termina em conflito e desgastes entre as partes e, o que é pior, os maiores prejudicados são animais, seja por terem suas chances de sobrevivência diminuídas ou por que virem a óbito por erro de manejo ou condições sanitárias inadequadas. Sem contar o efeito que solturas mal planejadas e mal executadas podem ter a longo e médio prazos nos ambientes naturais.
Mas claro, risco se conhece, se avalia e se mitiga e não pode jamais ser usado como desculpa para não se realizarem ações de soltura. Além disso, é muito mais simples preencher um documento e realizar testes do que coletar carcaças de animais que morrem sem assistência e esperança.
Em síntese, a avaliação dos riscos sanitários não é um luxo desnecessário, só executado por pesquisadores acadêmicos. É uma ação que deve realizada diariamente e de forma organizada para gerar uma base de dados comparáveis entre si e que, de fato, possa auxiliar a quem executa solturas a fazê-las de forma cada vez melhor e mais segura, tanto para os animais quanto para o meio ambiente.
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