
Por Raul Rennó Braga
Biólogo, mestre e doutor em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente é professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisador colaborador do Laboratório de Análise e Síntese em Biodiversidade (LASB-UFPR). Atua principalmente com pesquisas relacionadas a ictiologia e a invasões biológicas.
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Um dos maiores desafios da sociedade moderna consiste em gerar energia elétrica de forma sustentável. A geração de energia hidrelétrica (aquela obtida pela força das águas) é hoje a principal fonte de energia renovável no mundo, sendo considerada uma alternativa para substituir a gerada pela queima de combustíveis fósseis. Nesse cenário, o Brasil se destaca pelo grande potencial hidrelétrico de seus rios.
De acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), o Brasil é dono de cerca de 12% das reservas de água doce superficial no mundo. Com isso, a energia hidrelétrica corresponde a, aproximadamente, 65% da energia produzida no país. O potencial hidrelétrico brasileiro já foi praticamente todo explorado nas regiões Sul e Sudeste, sendo a região Norte, no bioma amazônico, a principal alternativa para a construção de novas barragens.
Apesar de ser uma energia renovável, será que essa é a única característica que devemos considerar na avaliação dos impactos ambientais gerados pela construção de barragens de usinas hidrelétricas? Quais as consequências para as espécies de peixes dos rios impactados? Como essa questão tem sido avaliada e os impactos têm sido mitigados no planejamento e na construção dessas barragens? Vamos discutir essas questões em mais detalhes com base em informações provenientes de estudos científicos.
Primeiramente, a principal alteração física causada pela construção de uma barragem é a descontinuidade do fluxo de água do rio. A barragem interrompe parte do fluxo e cria um lago (reservatório) na porção à montante do rio. Sendo assim, um ambiente de águas correntes se torna um ambiente lacustre e agora os peixes do local (e todos os outros organismos), adaptados à primeira condição, precisam encontrar formas de sobreviver no novo ambiente formado. Os estudos que acompanharam as consequências para as espécies de peixes observaram que, inicialmente e por um breve período, o número de espécies de peixes pode até aumentar no reservatório, uma vez que se acumulam ali as espécies já presentes e aquelas de locais próximos, mas que se beneficiam de uma menor intensidade do fluxo de água. No entanto, esse número acaba por declinar.
Com o tempo, somente aquelas espécies mais oportunistas, que apresentam uma dieta bastante variada utilizando o recurso que estiver mais disponível, sobrevivem e prosperam. Normalmente não são muitas com essas características. Por outro lado, todas aquelas espécies com necessidades alimentares mais específicas ou aquelas adaptadas a um ambiente de águas correntes acabam por declinar. Também fortemente afetadas são as espécies que realizam migrações de grandes distâncias e que precisam acessar diferentes tipos de habitat para completar o seu ciclo de vida. Essas últimas podem entrar em colapso e até mesmo desaparecer desses rios uma vez que seu ciclo reprodutivo pode ser comprometido.
Algumas espécies, como por exemplo o pintado (Pseudoplatystoma corruscans), peixe nativo da bacia do rio Paraná, costumam migrar para rios tributários para encontrar melhores condições ambientais e se reproduzir. Um estudo genético recente demonstrou que com a presença de grandes barragens os peixes não conseguem acessar e se reproduzir nos locais adequados, tendo então que procurar alternativas. Com isso, ocorre uma “mistura” entre indivíduos com características genéticas diferentes levando a uma diminuição na variabilidade genética dessas populações. Ao longo do tempo, isso pode levar a diminuição do tamanho populacional e até mesmo causar extinção local. Como o pintado é uma espécie predadora de topo de cadeia alimentar, as consequências de sua extinção local podem ser drásticas ao logo de todo o ecossistema. Além disso, como é uma espécie de interesse comercial, sua redução pode gerar prejuízos econômicos e sociais na região.

O exemplo do pintado é apenas um caso isolado? Aparentemente não. Um estudo no rio Paraná avaliou os efeitos da construção da barragem de Itaipu sobre a fauna de peixes de interesse comercial. Os autores concluíram que espécies migradoras de maior valor comercial que dominavam os recursos pesqueiros antes da construção da barragem, como por exemplo o jaú (Zungaro zungaro), o dourado (Salminus brasiliensis), o pacu (Piaractus mesopotamicus) e o pintado (Pseudoplatystoma corruscans), se tornaram uma fração pequena do estoque pesqueiro depois da formação do reservatório. A pesca da região então teve que voltar sua atenção para espécies de menor valor, mas que se adaptaram à nova condição do ambiente, como o armado (Pterodorus granulosus), a curimba (Prochilodus lineatus) e a curvina (Plagioscion squamosissimus).
A situação ecológica para a fauna de peixes é ainda especialmente agravada pela construção de diversos reservatórios em sequência. Nesse caso, o impacto sobre espécies migratórias é ainda mais intenso. Além disso, essa situação favorece o estabelecimento e a dispersão de espécies exóticas (não nativas de uma região) de peixes. Muitas das espécies introduzidas (transportadas para um local onde não ocorrem naturalmente), como carpas e tilápias, se beneficiam do ambiente lacustre formado pelos reservatórios e da diminuição dos peixes nativos que em condições naturais seriam competidores mais fortes. Quando diversos reservatórios são construídos em sequência, eles funcionam como “trampolins” para que essas espécies não nativas se dispersem de reservatório em reservatório e alcancem novas áreas contribuindo para o agravamento da problemática ambiental de peixes exóticos invasores.

As evidências dos impactos citados não são todas novas. Portando, o leitor deve se perguntar se algo tem sido feito para diminuir esses impactos a fim de contribuir para a manutenção tanto da biodiversidade quanto para aspectos sociais e econômicos envolvidos. Comumente a solução empregada nesses empreendimentos é a construção de escadas para peixes. Essas escadas são sequências de tanques que formam uma corredeira artificial e estimulam a subida desses animais. Assim, muitas espécies conseguem passar da parte à jusante (mais abaixo) da barragem para a parte à montante (acima da barragem). Ótimo! Problema solucionado, não é mesmo?
Infelizmente parece que não é tão simples assim. Como já disse Henry L. Mencken, “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. Os pesquisadores Angelo Agostinho e Fernando Pelicice chamaram essas estruturas de “armadilhas ecológicas”. Os autores explicam que os peixes, apesar de conseguirem subir utilizando as escadas, raramente descem. Assim, acabam confinados na porção do reservatório e, como já explicamos, esses locais apresentam condições desfavoráveis para as espécies adaptadas a ambientes de águas correntes. Os pesquisadores ressaltam que as escadas foram desenvolvidas para espécies como o salmão, que sobe pelas escadas, se reproduz nas porções superiores do rio e morre após se reproduzir apenas uma vez. Sendo assim, eles não precisam descer para completar o ciclo, como ocorre com os peixes da América do Sul. A relevância dessa contribuição levou a revista Nature a publicar uma reportagem sobre o artigo dos pesquisadores brasileiros.
Devido aos problemas apresentados, a construção de barragens (aqui devemos incluir também as construídas como reservatórios de água para abastecimento público) é considerada uma das principais ameaças para a biodiversidade de ambientes de água doce, juntamente com a superexploração de recursos, poluição, degradação do ambiente e introdução de espécies exóticas. Infelizmente, propor soluções para essa problemática não é fácil. Essas questões, no entanto, devem ser levadas em consideração no planejamento e na avaliação da viabilidade desses empreendimentos. Além disso, medidas que visam amenizar os impactos devem ser pensadas e adaptadas às características locais e não simplesmente “copiadas” do que é feito em outras regiões.
O Brasil está focado na exploração do potencial hidrológico dos rios da região da Amazônia. Será que cometeremos os mesmos erros?
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