Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
E em 2020 o mundo mudou. Nada que a Ciência não já nos tivesse alertado que aconteceria. Mesmo assim, talvez pela prepotência de se considerar em patamar superior aos outros integrantes do meio natural, nossa espécie foi pega de surpresa. O Sars-Cov-2 e a pandemia da Covid-19 nos deram a oportunidade de repensar nossas relações com o planeta e, acima de tudo, nossas relações intrínsecas. Sem contato físico, algo imposto pelo necessário isolamento social, nossa rede de afetos teve que ser ressignificada. Famílias, amigos, carinhos, vínculos foram fisicamente separados. Aos mais jovens, a adaptação é mais fácil, os contatos virtuais já fazem parte do cotidiano. Aos mais idosos, o toque físico faz falta.
Como em tantas famílias, a pandemia impôs a separação física entre mim e minha mãe. Casas distintas, bairros distintos – porém, não vidas distintas! A internet, a criatividade e a exuberante fauna brasileira nos ajudaram a permanecer conectados. Pouco depois do planeta tomar consciência da seriedade da situação, com a decretação do estado de pandemia pela OMS (Organização Mundial de Saúde), tive a ideia de propor à minha mãe uma atividade. E a senhora Ilmar Ribeiro da Silva, professora municipal aposentada do então ensino primário (hoje primeiro segmento do ensino fundamental), aceitou de pronto. Atividade que, por sinal, perdura até hoje, mesmo com o arrefecimento – e não o fim, infelizmente – da pandemia.
A cada dia, rigorosamente todo santo dia, eu faço o desenho de algum bicho nativo da nossa fauna e minha mãe o copia. Explicando melhor: eu desenho um representante zoológico e posto no Instagram, com replicação no Facebook, e dona Ilmar desenha também. Minha postagem inclui nome comum da espécie em português e inglês, além de hashtags alusivas à classificação taxonômica. Nasceu assim, em 3 de abril de 2020, a iniciativa #bichosdobrasil, que hoje, 19 de abril de 2022, dia em que escrevo este artigo, chega ao bicho de número 746. Ou seja, essa brincadeira entre mãe e filho tem quase a mesma idade da minha feliz participação aqui na coluna Invertebrados, que remonta a maio de 2020 [1].
Sobre o #bichosdobrasil, os desenhos que faço são rápidos, em menos de cinco minutos, sem maior elaboração ou preocupação estética. As únicas preocupações são o contato e a exaltação à fauna brasileira. Eu desenho com caneta nanquim de ponta fina, Ilmar copia a lápis. Nos quarenta primeiros dias da atividade, que resultaram em quarenta desenhos meus e outros tantos de minha mãe, para exaltar o termo “quarentena” produzi um fanzine, que pode ser conferido na página do zine Homem-Leoa [2] no Facebook. Como nossa quarentena transcende em muito a etimologia original, até o presente já foram ilustrados representantes dos filos animais Porifera, Cnidaria, Ctenophora, Nematodea, Annelida, Arthropoda, Mollusca, Echinodermata, Hemichordata e Chordata, dentre outros. E muitos mais estão por vir, sabe-se lá até quantos. Felizmente, o único limite que a exuberante biodiversidade brasileira tem é o da imaginação.
Apesar do objetivo ser meramente lúdico, a atividade meio que assumiu também uma função de divulgação da biodiversidade, posto que, eventualmente, contempla animais pouco conhecidos. Há alguma interação com terceiros, com questionamentos sobre detalhamentos morfológicos e de distribuição, sugestão de espécies, dentro de um clima de camaradagem. Uma dificuldade encontrada é a ausência de nomes comuns para determinadas espécies, algo notável em relação aos insetos e outros invertebrados – em certos casos, foi até inventado um nome comum que fizesse algum sentido. Algo que não acontece com as aves, por exemplo, que contam com uma fantástica enciclopédia on-line de informações, a WikiAves [3].
Alguns desenhos foram usados em homenagem a personalidades da academia e de outros setores, bem como em datas especiais e momentos simbólicos. A iniciativa já foi divulgada em dois espaços acadêmicos: a XV Semana de Biologia da Universidade Federal da Bahia, com título de “A fauna brasileira de filho para mãe: uma atividade lúdica e afetiva durante a quarentena” [4], e o VI Colóquio de Zoologia Cultural, com o título de “Relato de experiência: a fauna brasileira e suas mil e uma utilidades na iniciativa #bichosdobrasil” [5].
A escolha dessas 746 espécies desenhadas até hoje não obedeceu a qualquer critério científico. Na verdade, bichos mais familiares e com maior facilidade para que se desenhe naturalmente acabaram sendo priorizados. Assim, os super conhecidos mamíferos e aves são, por larga margem, os mais representados. Como típicos integrantes da chamada “fofofauna” [6], tal dominância não é de se estranhar. Mas nossa conversa aqui é sobre outro grupo, esse sim abundante e diversificado demais; aliás, o mais abundante e diversificado de todos: os insetos.
Abundantes, diversificados, presentes no dia a dia cultural humano, bem conhecidos e (vamos combinar!) bonitos, nos nossos desenhos do #bichosdobrasil os insetos estão desprestigiados demais. Foram, até aqui, apenas 62, o que é pouco em comparação aos “medalhões” vertebrados. Essa baixa representatividade tem a ver com a dificuldade de se desenhar um inseto, bicho de morfologia complexa e detalhada. Mas outro fator pode ter sido também importante: a já mencionada ausência de nomes populares. E o nome comum, vulgar ou popular é aquele que, por tradição, as pessoas utilizam [7], trazendo a espécie para perto de si. Um bicho sem nome comum é um bicho pouco conhecido. A maioria das espécies de inseto não tem nome comum ou então esse é generalizado, relativo a um grupo maior. Como, por exemplo, besouro, vespa, borboleta… Nomes plurais que definem grandes grupamentos e que não estão atrelados à espécie.
Dentre os insetos, a ordem Lepidoptera, que inclui as borboletas e mariposas, foi a mais representada. Isso também não constitui surpresa, pois os lepidópteros – notadamente as borboletas – estão entre os poucos insetos com imagem popular positiva, verdadeiros integrantes daquilo que pode ser chamado como “entomofofofauna” ou algo assim. Estão desenhadas as borboletas Papilio anchisiades, a rosa-de-luto; Heraclides thoas, o caixão-de-defunto; Parides burchellanus (família Papilionidae), a ribeirinha; Phoebis philea (família Pieridae), a borboleta-amarela; Caligo brasiliensis, a borboleta-coruja; Junonia evarete, a borboleta-nossa-senhora-aparecida, que já foi comentada aqui por evocar a imagem de Nossa Senhora [8]; Diaethria clymena (família Nymphalidae), a borboleta-88; Hemiargus hanno (família Lycaenidae), a borboleta-licenídea; e Urbanus esmeraldus (família Hesperiidae), a borboleta-esmeralda. E as mariposas Ascalapha odorata (família Erebidae), a bruxa, que já foi tema neste espaço [1]; Gamelia rubriluna, a mariposa-gamélia; Citheronia laocoon (família Saturniidae), a mariposa-citerônia; Trichophassus giganteus (família Hepialidae), a mariposa-fantasma; Pantherodes pardalaria (família Geometridae), a mariposa-oncinha; Parapoynx restingalis, a mariposa-aquática; Synclita gurgitalis (família Crambidae), lagarta aquática representada em seu casulo, como forma de se incentivar o isolamento social – #fiqueemcasa, e portando um gorro de Papai Noel, pelo desenho ter sido feito próximo ao Natal; e Oiketicus kirbyi (família Psychidae), o bicho-do-cesto, também no casulo e com gorro natalino.
Também muito bem representada, a ordem Hemiptera contou com os percevejos Lethocerus grandis (família Belostomatidae), a barata-d’água; Paravelia amapaenses (família Veliidae), percevejo-patinador descrito do Amapá e incluído como protesto à crise energética que assolou os amapaenses em 2020. Além de insetos anteriormente incluídos no antigo grupo dos homópteros, Acraephia perspicillata, a cigarrinha-pintada; Fulgora laternaria (família Fulgoridae), a cigarra-cobra ou jequitiranaboia, que já foi abordada aqui [9]; Chionomus puella (família Delphacidae), a cigarrinha-de-manchas-pretas; Tenucephalus novafriburgo, a cigarrinha-friburguense; Agallia manauara, cigarrinha descrita de Manaus e incluída na iniciativa #bichosdobrasil como forma de chamar atenção para a terrível crise de falta de oxigênio na cidade, em 2021; Polana amapaensis (família Cicadellidae), cigarrinha igualmente incluída em solidariedade ao Amapá; Carineta diardi (família Cicadidae), a cigarra-formosa; Cyphonia xavantina (família Membracidae), o soldadinho-helicóptero; Protortonia navesi (família Margarodidae), a cochonilha-das-raízes-da-mandioca.
A classe Collembola foi o terceiro grupamento mais numeroso nessa atividade lúdica, o que não corresponde à proporcionalidade real dos diferentes grupos de insetos. Muito pelo contrário, trata-se de um viés de amostragem, posto que o grupo é muito bem estudado por especialistas de diferentes partes do Brasil, e, além disso, os colembólogos são particularmente criativos no que se refere aos nomes dados às suas espécies, algo que sempre me chama a atenção. As espécies incluídas são Dicranocentrus magnus (família Entomobryidae); Isotogastrura praiana (família Isogastruridae); Furculanurida boiuna e Friesea curupira (família Neanuridae), dedicadas aos grandes mitos folclóricos Boiúna e Curupira; e Dikranocentrus pikachu (família Orchesellidae), batizada em homenagem a um ícone da cultura pop, o Pokémon Pikachu. O fato de os colêmbolos serem insetos de morfologia relativamente simples possivelmente contribuiu para sua presença desproporcional na atividade. Outros grupos de insetos apterigotos (sem asas) também estão representados: a ordem Diplura, com Symphylurinus almeidai (família Projapygidae), e Protura, com Brasilentulus huetheri (família Acerentomidae).
A ordem Orthoptera conta com um cachorrinho-do-mato, Neocurtilla hexadactyla (família Gryllotalpidae); o gafanhoto-migratório-sul-americano, Schistocerca cancellata (família Acrididae), cuja explosão populacional causou pânico em 2020, o que foi amplamente divulgado pela imprensa [10]; além, como não poderia deixar de ser, duas esperanças, Microcentrum bicentenarium e Neoconocephalus xiphophorus (família Tettigoniidae) – afinal, como já visto aqui [11], “a esperança é a última que morre”. E os aparentados dos ortópteros também marcam presença: a ordem Phasmatodea tem o bicho-pau Cladomorphus phyllinus (família Phasmatidae); a ordem Blattodea tem dois representantes, a barata Epilampra mimosa (Blaberidae), em honra à saudosa professora Sonia Maria Lopes Fraga (in memoriam), especialista no grupo, e o cupim Genuotermes spinifer (família Termitidae), em celebração ao Sábado de Aleluia (“aleluia” é um dos nomes populares da revoada de cupins, quando eles ficam voando em torno da luz); a ordem Mantodea tem dois louva-a-deus, ambos da família Mantidae, Stagmatoptera biocellata e Vates phoenix, esse último batizado em homenagem ao Museu Nacional [12], por conta do trágico incêndio que vitimou a instituição e a Ciência como um todo.
Da ordem Coleoptera estão representados o potó Paederus brasiliensis (família Staphylinidae); Dynastes hercules (família Scarabaeidae), o besouro-hércules; e uma joaninha, Cycloneda sanguinea (família Coccinellidae). Por sinal, joaninhas são mais um exemplo dos poucos insetos com representação social positiva, o que já foi abordado aqui [13]. Por sua vez, a ordem Hymenoptera está representada pela abelha-sem-ferrão Melipona quadrifasciata (família Apidae) e pela formiga-feiticeira Darditilla debilis (família Mutyllidae), grupo também já abordado aqui [8].
Da ordem Diptera estão representados o mosquito Haemagogus leucocelaneaus (família Culidae); a mosca Paucimyia oliveirai (família Odiniidae); e a varejeira Argoravinia catiae (família Sarcophagidae). Essa última foi uma homenagem da série #bichosdobrasil à saudosa professora Cátia Antunes de Mello Patiu (in memoriam), trazendo uma espécie que foi a ela dedicada. Ordens consideradas próximas à Diptera em muitos esquemas de classificação, Strepsiptera, com Bahiaxenus relictus (família Bahiaxenidae), e Siphonaptera, com a pulga Xenopsylla brasiliensis (família Pulicidae), também estão representadas.
Da ordem Trichoptera estão representadas Helicopsyche bendego (família Helicopsychidae), mais uma homenagem ao Museu Nacional, posto que a espécie foi batizada com o nome do icônico meteorito do acervo da instituição [13]; Marilia sp. (família Odontoceridae) e Oxyethira hyalina (família Hydroptilidae), essas últimas representadas na forma larval, dentro do respectivo casulo (como já mencionado, trata-se de mensagem de apoio à necessidade de isolamento social) e com um gorro de Papai Noel (por conta do Natal). Esse mesmo tipo de representação foi feito com o integrante da ordem Neuroptera, o bicho-da-fortuna Chrysoperla raimundoi (família Chrysopidae), grupo que também já foi abordado aqui neste espaço [14]
Da ordem Ephemeroptera estão representadas Diamantina ulmeri e Hagenulopsis perere, ambas da família Leptophlebiidae, essa última batizada em homenagem ao folclórico Saci Pererê; e Caenis elidioi (família Caenidae), espécie a mim dedicada pelos autores, os queridos amigos professores Lucas Lima, Carlos Molineri, Ulisses Pinheiro e Frederico Salles, em 2016, aos quais agradeço penhoradamente. Grupo correlato, a ordem Odonata foi representada pela libélula Rhionaeschna eduardoi (família Aeschinidae), espécie descrita pelo saudoso professor Ângelo Barbosa Monteiro Machado (in memoriam) e incluída na atividade #bichosdobrasil em sua homenagem.
Assim, entre brincadeira e realidade, entre o lúdico e o científico, é fundamental que se fale sempre a respeito da biodiversidade brasileira. Com tantos aspectos interessantes a serem pesquisados, aplicados, conversados e divulgados, nossa fauna faz lembrar a antiga propaganda de um objeto de limpeza doméstica: tem 1001 utilidades.
[1] https://faunanews.com.br/2020/05/20/verdades-e-lendas-da-mariposa-bruxa
[2] https://www.facebook.com/Homem-Leoa-Um-fanzine-tamb%C3%A9m-sobre-Ci%C3%AAncia-430080281083607
[3] https://www.wikiaves.com.br
[4] https://www.instagram.com/p/CEun26EBiFc/?utm_source=ig_web_copy_link
[5] https://www.youtube.com/watch?v=n9VYk-yuhkE&list=PLVk9Yf7CmhR28NBgHdFpqwuzUONe8F6im&index=19&t=6s
[6] https://revistabioika.org
[7] https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/gestao-na-camara-dos-deputados/responsabilidade-social-e-ambiental/ecocamara/noticias/saiba-como-se-definem-os-nomes-das-plantas-com-exemplos-dos-jardins-da-camara
[8] https://faunanews.com.br/2021/10/20/a-senhora-dos-insetos
[9] https://faunanews.com.br/2020/10/21/insetos-no-folclore-brasileiro-muitas-narrativas-refletindo-discriminacoes-e-padroes-de-comportamento
[10] https://www.canalrural.com.br/
[11] https://faunanews.com.br/2021/07/21/na-boca-do-povo-os-insetos-nas-expressoes-populares
[12] https://www.projetomantis.com/vatesphoenix
[13] https://tecnoblog.net/meiobit/390217/bendego-o-meteorito-incendiado-do-museu-nacional-que-e-a-cara-do-brasil
[14] https://faunanews.com.br/2021/08/18/insetos-no-folclore-brasileiro-o-talisma-da-coruja-e-outras-estorias
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