Sacrifício de animais em rituais religiosos: ausência de sentido

No ano de 1998, início dos trabalhos da recém-formada Delegacia de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico e Cultural do Rio de Janeiro (Delemaph/RJ), fazíamos pesquisa/investigações de campo para futuras operações policiais da especializada. Lembro-me de visitarmos o famoso Mercadão de Madureira, um imenso mercado popular no bairro de mesmo nome no município do Rio. Na ocasião, chamou-nos a atenção uma das lojas – ocupava uma área bem maior que as demais ali instaladas – cujos artigos eram voltados para cultos religiosos. Bem ao lado, um cercado com alguns animais: galinhas pretas e bodes. Sabíamos do que se tratava e o destino daquelas criaturas.

Passados dois anos, já em 2000, as manchetes dos jornais e telejornais anunciavam um grande incêndio no mercado. Imediatamente nos lembramos dos animais ali encurralados e que teriam, apenas, desencarnado antecipadamente.

Mas por que fiz essa introdução? Para exemplificar uma batalha jurídica – e porque não dizer política – que teve início no Rio Grande do Sul e foi “concluída” no Supremo Tribunal Federal.

No ano de 2019, o Ministério Público estadual do Rio Grande do Sul (MP/RS) entrou com recurso contra decisão do Tribunal de Justiça daquele Estado, que declarou a constitucionalidade da Lei nº 12.131/2004 – posteriormente revogada pela Lei nº 15.363/2019. A Assembleia Legislativa tinha acrescentado, por meio da aprovação dessa lei, parágrafo único ao artigo 2° do Código Estadual de Proteção aos Animais, ao dispor que o sacrifício animal é permitido quando realizado no livre exercício de cultos e liturgias das religiões de matriz africana. O recurso do MP/RS considerou que a lei invadiria a competência da União para legislar sobre matéria penal e que iria privilegiar os cultos das religiões de matriz africana para o sacrifício de animais em rituais, ofenderia a isonomia e iria contra o caráter laico do país.

A partir da Lei n° 12.131/2004, o artigo 2° do Código de Proteção aos Animais do Estado do Rio Grande do Sul passou a ter a seguinte redação:

Artigo 2º – É vedado:
I – ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;
II – manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III – obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV – não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V – exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal;
VI – enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem;
VII – sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde – OMS -, nos programas de profilaxia da raiva.
Parágrafo único – Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. (Incluído pela Lei n° 12.131/2004)

Em 2019, a Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial e a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados de Brasília realizou encontro entre o presidente do STF e representantes do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma), do Movimento de Juventude dos Povos Tradicionais de Matriz Africana e da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, com o objetivo de dar apoio às demandas dos povos tradicionais, tendo como mote “defender as garantias constitucionais”.

Tratamento da matéria pelo STF

Com exceção de um dos ministros (que não estava presente), todos os outros votaram para autorizar a prática e reconhecer o direito a todas essas religiões de sacrificar animais em cultos (lembrando que, em tese, também haveria a validação de todos os outros incisos descritos no artigo 2º da referida lei).

Alguns argumentos usados por ministros, tais como “a sacralização deve ser conduzida sem o sofrimento inútil do animal” e “me parece evidente que quando se trata do sacrifício de animais nesses cultos afros, isso faz parte da liturgia e está constitucionalmente protegido” foram apresentados.

Analisando a questão sob a luz da legislação, concordo com o representante do Ministério Público: incialmente, feriria o princípio da hierarquia das leis, quando uma norma é hierarquicamente inferior (recebe seu fundamento de validade, no aspecto formal e material), e não poderia ir de encontro a uma legislação mais específica, no caso a Lei de Crimes Ambientais – que não abre tal precedente e ainda se trata de legislação especial –, que regula matéria com critérios particulares e diversos das leis gerais.

A não vinculação – em tese – com outros Estados da federação parece estar intocada, mas pode servir de norte para futuros interesses de unidades que assim desejarem. Na prática, sabemos que cultos dessa natureza ocorrem em todas as unidades da federação.

Cabe salientar que em nenhum momento se fez menção a quais espécies de animais estamos falando. A Lei nº 11.915/ 2003 trata, além das disposições gerais, nas suas seções I e II do capítulo II, de fauna silvestre e exótica.

Sabemos, por experiência, que caprinos que apresentam chifres e barba, junto com animais da ordem dos galiformes, são os preferidos. Os primeiros por reportarem a uma figura que se rebelou contra Deus e o segundo por se tratar de uma “oferenda” (alimento) para entidades espirituais. Mas entendo que a lista “ficou em aberto”.

Me recuso a descrever aqui – por motivos óbvios – alguns desses rituais, mas de certo nenhum ser vivo senciente os merece. Em certos momentos, nos faltam freios morais.

De que adianta a série de restrições descritas na legislação ordinária em questão (vedado: utilizar animal cego, enfermo …; não lhe dar descanso; trabalhar mais de seis horas seguidas; oferecer proteção de conforto …; utilizar animal fraco e doente; não ter liberdade de movimento; o proprietário não apresentar uma série de documentos etc., etc.) se culminamos nessas decisões?

Por fim, justificar abate e maus-tratos a animais simplesmente vinculando-os às tradições e liturgias religiosas me fez dar título a essa matéria.

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