Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade de Brasília (UnB). É mestre e doutora em Ecologia pela mesma universidade. Atua nas áreas de ornitologia, bioacústica, ecologia comportamental e conservação da biodiversidade. Integra a Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil)
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Durante uma viagem de avião, você já reparou quando está sobrevoando uma área de proteção ambiental?
Já pensou nos possíveis impactos que esses sobrevoos podem causar?
Comecei a pensar sobre o assunto durante meu doutorado (2014-2018), enquanto trabalhava com o impacto do ruído aeroportuário sob a avifauna.
Sabemos que o transporte aéreo é necessário à nossa sociedade e que essa atividade vem crescendo continuamente (vide expansão de diversos aeroportos brasileiros). Entretanto, o ruído produzido pela aviação é um problema reconhecido em áreas residenciais, hospitalares e escolares, sendo que a exposição prolongada pode gerar diversos problemas de saúde, como distúrbios de sono, dificuldade de concentração e memorização, risco aumentado de hipertensão e infarto. Por isso, existem regulações que visam controlar o impacto do ruído em áreas habitadas próximas a aeroportos (vide regulamento da ANAC – RBAC 161, que trata sobre o Plano de Zoneamento de Ruído – PZR).
Assim como em humanos, o ruído contínuo e extremo também gera prejuízos à saúde de outros seres vivos. Fisiologicamente, a exposição ao ruído causa um estado de alerta, desencadeando respostas como a liberação de hormônios glicocorticóides (cortisol e corticosterona, por exemplo), que preparam o indivíduo para lidar com uma situação de estresse (fuga ou luta). Quando essa exposição ocorre repetidas vezes, esses hormônios podem ser prejudiciais, gerando condições de estresse crônico.
A fim de evitar o sobrevoo de áreas residenciais, muitas rotas de pousos e decolagens são planejadas acima de locais com menor densidade humana. Isso começa a ser um problema quando essas áreas são unidades de conservação (UCs) de proteção integral (estações ecológicas, reservas biológicas, parques nacionais, monumentos naturais e refúgios da vida selvagem), que representam nosso maior nível de proteção ambiental e onde não deve haver interferências humanas (vide Lei nº 9.985/2000, que trata do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC).
Unidades de conservação de proteção integral abrigam e garantem proteção a diversas espécies da fauna e flora brasileiras, onde é garantida ao cidadão a conservação da natureza e dos recursos naturais. Essas áreas remanescentes são os únicos locais seguros onde nossa fauna de grande porte pode se reproduzir e a exposição contínua a sobrevoos de aeronaves pode estar prejudicando muitas espécies.
Estudos mostram os efeitos negativos do estresse em vertebrados sexualmente maduros, fêmeas grávidas e filhotes. Esse estresse pode reduzir a fertilidade de machos e fêmeas, causando a diminuição do tamanho das gônadas, redução da quantidade de espermatozoides produzidos e comprometimento da maturação de óvulos. Caso a fertilização ocorra e o embrião seja implantado, as fêmeas podem ainda sofrer estresse gestacional, que é capaz de comprometer o desenvolvimento e a função cerebral do feto, afetando a qualidade da prole produzida. Após o parto, os filhotes ainda requerem cuidados parentais, entretanto, sob condições de estresse crônico, há maiores chances de rejeição desse recém-nascido, o que pode levá-lo à morte.
Para entender melhor esse cenário no Brasil, durante meu doutorado avaliei a presença de unidades de conservação no entorno imediato (raio de 10 quilômetros) dos 12 maiores aeroportos brasileiros e a situação específica do Aeroporto Internacional de Brasília (AJK).
Este aeroporto encontra-se dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Gama e Cabeça-de-Veado (UC de uso sustentável) e está cercado por três áreas de relevante interesse ecológico (ARIEs): Capetinga-Taquara, Granja do Ipê e Riacho Fundo e uma ESEC (Estação Ecológica do Jardim Botânico). Encontramos ainda em seu entorno, a Reserva Biológica do IBGE e duas áreas de proteção especial (Jardim Botânico de Brasília e Jardim Zoológico de Brasília), que não são classificadas dentro do SNUC. Adicionalmente, as áreas que compreendem a ESEC do Jardim Botânico e a Reserva Biológica do IBGE também pertencem à área central (core area) da Reserva da Biosfera do Cerrado (UNESCO, 2019). Nos locais citados são registradas diversas espécies de médio e grande porte, muitas das quais encontram-se na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas (IUCN, 2016), como a onça-parda (Puma concolor), a jaguatirica (Leopardus pardalis), a anta (Tapirus terrestris), o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), o tatu-canastra (Priodontes maximus), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactila), o bugio (Alouatta caraya) e o veado-catingueiro (Mazama gouazoupira).
O impacto do ruído aeroportuário nas áreas residenciais próximas ao Aeroporto Internacional de Brasília é de conhecimento público, já tendo sido alvo de petições públicas e notificações oficiais. Também é reconhecido seu impacto sobre as áreas de visitação do Jardim Botânico de Brasília, onde frequentemente podemos escutar aeronaves pousando ou decolando. Contudo, pouco se sabe sobre os efeitos na fauna.
Então, para entender melhor o que está acontecendo nessas áreas sensíveis, analisamos as rotas e as altitudes de voos acima da ESEC Jardim Botânico (a única UC de proteção integral). E comprovamos que muitas rotas de pouso e decolagem desse aeroporto sobrepõem a área da ESEC mais a da Reserva da Biosfera. Além disso, as curvas das aeronaves são realizadas a altitudes de aproximadamente 500 metros, o que pode gerar maiores níveis de ruído.
O que podemos fazer?
A legislação brasileira não prevê a interação entre UCs de proteção integral e aeroportos, deixando uma lacuna no nosso sistema de proteção à biodiversidade. Internacionalmente, existem definições de “níveis aceitáveis de ruído” produzidos por aeronaves (helicópteros, aviões etc) dentro de parques nacionais e definições acerca da altitude mínima permitida durante sobrevoos.
No Brasil, precisamos começar a considerar os impactos do ruído na biodiversidade e no licenciamento ambiental, uma vez que nossos aeroportos continuam crescendo e as áreas de proteção ambiental vêm perdendo espaço. Com base nas ideias de Miller (2008), propomos que duas questões centrais sejam desenvolvidas para darmos início ao processo de controle de ruído dentro de UCs.
1 -Qual nível de ruído humano é aceitável dentro de unidades de conservação?
O passo inicial para responder a essa questão deve ser a medição do ruído atual dentro de UCs e a definição do nível de ruído aceitável para cada tipo de UC do SNUC, determinando maiores restrições em UCs de proteção integral.
Nessa etapa, também é importante definir a origem do ruído em cada área específica (aviões, rodovias, indústrias, barcos). A partir dessas informações, será possível avaliar a possibilidade de redução das fontes de ruído.
2 -Como a paisagem acústica de UCs deve ser quantificada?
Primeiramente, “paisagem acústica” refere-se ao conjunto de sons presentes em um ambiente e é composta por sons bióticos (biofonia, como a fauna), sons geofísicos (geofonia, como ventos, chuvas, rios) e sons produzidos por humanos (antropofonia).
A quantificação da paisagem acústica deve, idealmente, compreender monitoramentos acústicos de longo prazo e levar em conta um grande espectro de frequências sonoras, não sendo focado apenas nos espectros de frequências audíveis aos seres humanos.
Mitigação em aeroportos
As ações de mitigação em aeroportos devem ser focadas na redução do ruído produzido pelas aeronaves, em mudanças operacionais nas rotas e altitude de pousos e decolagens, e na atualização dos planos de uso do solo nas imediações dos aeroportos, incluindo a previsão de presença de UCs e medidas relativas ao caso. A legislação aeroportuária necessita estabelecer regulações para o ruído humano, mitigação dos impactos da aviação sobre a avifauna e uma maior atenção relativa ao licenciamento ambiental de empreendimentos que gerem níveis prejudiciais de ruído.
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