Laila Rebecca
Jornalista e comunicadora para conservação e sustentabilidade.
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Pela primeira vez no mundo, um registro inédito revela a estratégia de caça usada pelo boto-cinza (Sotalia guianensis) para cercar um cardume de peixes. A imagem foi obtida na baía dos Golfinhos, no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, próximo à cidade de Cananéia, no litoral sul de São Paulo, região onde acontece o Projeto Boto-cinza – uma realização do Instituto de Pesquisas Cananéia (IPeC) e com o patrocínio da Petrobras Socioambiental, que estuda a espécie há 40 anos.
De acordo com biólogo e pesquisador Caio Louzada, coordenador do Projeto Boto-cinza, até recentemente acreditava-se que, das 36 espécies existentes de golfinhos, a estratégia de cercar cardumes formando um “anel de lama” era exclusiva do golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), em populações da espécie na Flórida e Caribe. No entanto, o registro em Cananéia muda tudo.
Imagens de drone, feitas em 2022 e analisadas durante meses, revelam que os botos-cinza também usam a estratégia. Para formar o anel de lama, os botos nadam rápido em movimento circulares batendo a cauda no fundo do estuário, formando um círculo de lama – enquanto um faz o meio círculo de um lado, outro vem do fechando o anel pelo lado oposto e cercando o cardume. Para as tainhas, espécie de peixe que é a base alimentar do boto-cinza nessa região, esse anel é instransponível. Com isso, o cardume entra em desespero, quebra a formação e as tainhas começam a saltar para fora d’água, momento em que os botos já estão esperando de “boca” aberta para pegá-las.
Confira os vídeos:
Imagens de drone mostram o trabalho em equipe dos botos, envolvendo truques de pesca e comunicação por assovios para coordenar os ataques aos cardumes – Vídeos: Mariane Novelli e Julia Pierry
Como uma estratégia de caça de uma espécie que está a milhares de quilômetros de distância de outra pode ser usada em uma região completamente diferente? A pergunta intrigou os pesquisadores do Projeto Boto-cinza e, segundo Caio, a resposta pode estar na inteligência da família Delphinidae, ou seja, o grupo de espécies de golfinhos. “São animais extremamente inteligentes, por isso, as espécies podem ter desenvolvido estratégias similares adaptadas para ambientes diferentes com o objetivo de conseguir alimentação”, explica o pesquisador.
Para entender melhor sobre o comportamento dos botos-cinza durante a caça, os pesquisadores do projeto utilizaram hidrofones, microfones aquáticos que captam a “conversa” dos animais. Com o equipamento, uma outra descoberta surpreendente: eles coordenam os ataques utilizando padrões de assovios e estalidos (som parecido com estalos) de ecolocalização para mapear o ambiente, identificando o tamanho e a localização das presas.
Como a visibilidade da água no estuário é muito baixa, eles precisam usar a inteligência e a comunicação para coordenar o ataque e para localizar o cardume de tainhas. Esse fator, associado ao processo de criar o anel de lama, é, de fato, uma descoberta surpreendente”, descreve Caio.
Outro fator interessante é que os botos-cinza, na maioria das vezes, executaram o anel de lama em águas rasas, uma manobra perigosa, já que podem encalhar. “Acreditamos que facilite o cercamento do cardume. Curiosamente, esse comportamento de caçar em águas mais rasas, também acontece na Patagônia Argentina, com as orcas que predam filhotes de lobos marinhos na praia. Diferentemente do senso comum, a orca também é um golfinho, só que maior”, diz o coordenador do projeto.
Mas as habilidades dos botos-cinza de Cananéia não param por aí. O estuário da Ilha do Cardoso é palco para um raro exemplo de mutualismo (relação ecológica entre indivíduos de espécies diferentes, em que ambos são beneficiados pela interação) entre humanos e animais.
Os chamados cercos-fixos, que são armadilhas instalada pelos pescadores artesanais para a pesca de tainha e outras espécies de peixes, se tornou uma ferramenta para ajudar no anel de lama e outras estratégias de caça dos botos-cinza. As estruturas ajudam os golfinhos a cercarem os cardumes, consequentemente, mais tainhas também caem nas armadilhas, beneficiando os pescadores.
“Exemplos como esse são raros no mundo. O que torna essa descoberta ainda mais interessante. Os botos-cinza de Cananéia não só fabricam o anel de lama, como coordenam os ataques com uma comunicação supercomplexa, além de utilizarem uma ferramenta humana para aprimorar a sua estratégia de pesca. Essa é, com certeza, uma das descobertas mais emblemáticas envolvendo a inteligência desses animais”, complementa Caio.
A descoberta é fruto do trabalho da frente de pesquisa de Ecologia Comportamental do projeto, que investiga como os botos agem na região e como se relacionam com as atividades humanas e com o ecossistema. Os pesquisadores também buscam compreender quais fatores estão por trás das atividades executadas e como os comportamentos evoluem e são transmitidos de geração para geração, influenciando a vida e sobrevivência dessa espécie.
A descoberta também será descrita em artigo para publicação científica.
Cananéia é um dos únicos lugares no país e no mundo em que o boto-cinza é facilmente avistado. Ao mesmo tempo em que a facilidade é uma oportunidade, também é uma ameaça à espécie.
“A poluição sonora e da água no oceano da região impacta diretamente a espécie, seja na interferência na comunicação entre os botos – essencial para a estrutura da população, como na obtenção de alimento e saúde desses animais. Por outro lado, há quem ainda pense que para ver um golfinho é preciso ir para um parque aquático na Flórida, sendo que a poucos quilômetros da maior metrópole da América Latina, que é a capital paulista, é possível ver os botos-cinza de perto. No entanto, é preciso que esse potencial seja aproveitado de forma ordenada, com o menor impacto possível às espécies e ao hábitat. A expansão das atividades humanas nessa região deve, prioritariamente, considerar a conservação da biodiversidade local”, finaliza Caio.
O Projeto Boto-Cinza é uma iniciativa do IPeC que visa o conhecimento e a conservação dessa espécie, bem como do seu hábitat. As atividades tiveram início na década de 1980 na região de Cananéia. Ao longo desse período, foram desenvolvidos inúmeros trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado com o apoio do Instituto de Pesquisas Cananéia e por meio de parcerias com diferentes instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior.
Além da pesquisa científica, a equipe do projeto promove atividades de educação, conscientização ambiental e valorização da cultura local, o que confirma seu papel como importante colaboradora na busca de soluções para os problemas socioambientais da região. O projeto participa de redes gestoras das áreas ambiental, turística e cultural e os resultados dos estudos desenvolvidos são disponibilizados, passando a ser incorporados em pautas de discussões da agenda local.
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