Por Suzana Padua
Mestra em educação ambiental e doutora em desenvolvimento sustentável. Co-fundadora e presidente do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e da Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade (Escas)
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Muito se tem falado sobre regeneração. O que é regeneração? Por que surgiu mais um termo que implica em mudar o que está em curso por conta de realidades não promissoras?
O fato é que a humanidade não convive harmonicamente com outros seres humanos ou com a natureza. Um autor (Berry, 1992) chega a dizer que a palavra “ambiente” nem deveria existir porque temos em nosso corpo o que encontramos fora e necessitamos dos elementos que estão na natureza em boa qualidade para que possamos viver bem. Mas, claro, no dia a dia e no correr da história não nos damos conta desse fato e por isso tratamos o mundo natural (e, infelizmente, também outros serem humanos) como recurso a ser explorado. E o resultado é que na busca por caminhos inclusivos e éticos vem surgindo um aglomerado de expressões que visam mudar o rumo para melhor.
O termo ecodesenvolvimento foi sugerido por Ignacy Sachs por volta da década de 1980, ao perceber os danos que o desenvolvimento tradicional e impensado estava ocasionando. Ecodesenvolvimento acabou sendo substituído por desenvolvimento sustentável, fortemente divulgado na Rio 92. Entretanto, desde seu nascedouro, vários pensadores chamaram a atenção para a contradição entre a palavra “desenvolvimento”, que inevitavelmente resulta em impactos diversos, e a “sustentável”. A expressão poderia ser questionada – para quem sustentar ou para o quê -, havendo a possibilidade de se desejar somente a manutenção da extração e da exploração dos recursos da natureza para fins econômicos, aumentando a degradação e as diferenças sociais. Derivou desses termos o conceito “sustentabilidade”, que já mostra relação entre campos como hidrologia, geologia, plantas e animais que sustentam a vida, com a noção da interligação entre eles. Todavia, na vertente da sustentabilidade se percebe a preocupação de se evitar a continuidade de danos, sem ainda haver uma visão do sistema vivo que existe no planeta, onde tudo tem causas e consequências, sejam elas positivas ou negativas. Tudo está interligado.
A necessidade de integrar todos os saberes e pensar de forma sistêmica, a partir da compreensão de que tudo está interconectado e qualquer ação tem efeitos, levou a um conceito ainda mais novo: a regeneração. A ideia central é que não basta sustentar, pois as perdas já são marcantes. É necessário restaurar e garantir condições para que cada espécie siga seu processo natural evolutivo e também que todos os seres humanos tenham vida digna. Mas é preciso um processo de cura dos danos que já causamos, com consciência da necessidade de inter-relações com todos os sistemas vivos. E o processo de cura demanda cuidados contínuos, pensados e com engajamento em questões múltiplas.
Importante observar que esses termos foram sendo criados a partir da percepção dos efeitos das ações humanas sobre o planeta. Se vivêssemos em harmonia, respeitando e celebrando a natureza e percebendo que somos parte, uma espécie em meio a tantas outras, e que os elementos da natureza estão em nós e que dependemos do equilíbrio em todas as suas relações, não haveria necessidade da invenção de termo algum. A história nos mostra como as agressões ao meio ambiente e as diferenças sociais sempre existiram, mas aumentaram sobremaneira com o avanço da tecnologia. O consumo incentivado, que faz girar um sistema insustentável de produção de itens muitas vezes desnecessários, acirra a ganância e o poder de poucos em detrimento de muitos e de tantos elementos naturais, que eles passam a ser vistos apenas como recursos.
E a fauna com isso?
Evidentemente, as áreas naturais, habitat da fauna, da flora e de microrganismos e elementos imprescindíveis à vida, vêm sofrendo reduções com agressões aceleradas. Com isso, as perdas são inimagináveis e muitas vezes irreparáveis. Mas, os amantes da natureza não se cansam de reagir e lutar pelo que consideram fundamental para proteger os patrimônios naturais que enriquecem o planeta Terra. Exemplos estão por toda parte, como aqui mesmo entre os colaboradores do Fauna News. Nadamos contra correntes, mas nossa convicção é verdadeira e apaixonada. E muitos de nós fomos obrigados a desempenhar papéis mais abrangentes do que meramente estudar uma espécie, por exemplo. Percebemos que a realidade é complexa e exige iniciativas multifacetadas, interdisciplinares e com pensamento sistêmico. Levamos muitos sustos no correr de nossas trajetórias e frequentemente assumimos posturas que não havíamos previsto quando nos embrenhamos no caminho da conservação de espécies, ecossistemas biomas ou elementos naturais.
A conservação da fauna é por vezes mais fácil de receber atenção e apoio do que um ecossistema ou bioma, por mais que eles representem a proteção de muito mais vida. Algumas espécies da fauna parecem atrair mais atenção do ser humano do que outras, ou por sua beleza ou por algum vínculo afetivo que se crie no imaginário. Já biomas ou mesmo ecossistemas são complexos, o que pode dificultar o interesse do público em geral.
Todavia, o valor de iniciativas focadas em espécies é inquestionável, pois quando se protege uma espécie, na verdade uma infinidade de outras que coabitam o mesmo habitat são beneficiadas. Criam-se, assim, ciclos virtuosos de proteção de todo um ecossistema ou até do bioma onde a espécie se encontra. Se cada localidade tivesse uma espécie sendo estudada e protegida, muito mais seria efetivamente conservado.
Como exemplo, o mico-leão preto
Dentre as espécies que chamam atenção por sua beleza ou carisma, algumas se destacam, como determinadas aves, répteis ou mamíferos. Dentre esses, os primatas têm características que se assemelham às humanas, o que os tornam atraentes como espécies símbolo de uma localidade. Foi assim com o mico-leão preto (Leontopithecus crysopygus), espécie que fez parte de minha mudança de vida quando enveredei pelo caminho da educação ambiental tendo ele como foco principal.
Enquanto meu marido, Claudio Padua, estudava o mico-leão preto na floresta para saber sobre sua ecologia, como vive e do que necessita para continuar existindo nas florestas semideciduais do oeste Paulista, no Pontal do Paranapanema, eu passei a me dedicar a atrair apoiadores entre as comunidades locais para a sua proteção. O mico tem comportamentos encantadores como os cuidados parentais e a união familiar, por exemplo, que torna as narrativas a seu respeito interessantes de serem repassadas aos diversos públicos da região.
A conservação do mico assemelha-se ao processo de regeneração descrito acima. O Claudio, como jovem cientista que era, jamais imaginou que muitas frentes de trabalho seriam necessárias para que a espécie que estudava fosse efetivamente protegida. Ingenuamente, achava que bastaria conhecê-la profundamente para que fosse perpetuada ad eterno. Descobrimos logo cedo, no entanto, que seria necessário estancar as agressões contínuas que ocorriam ao meio ambiente e proteger o que havia restado de florestas em pé. Era necessário ir além de sustentar o que havia restado e trabalhar pela recuperação das matas e as enriquecer de diversas formas, como com o plantio de faixas de florestas ao redor do que restara (Projeto Abraço Verde), criar pequenos bosques para aumentar a cobertura vegetal e dar a pássaros e insetos a chance de dispersarem sementes (Projeto Trampolins Ecológicos com sistemas agroflorestais – SAFs ou stepping stones) e, o mais emocionante, plantar corredores de florestas que conectam um fragmento de mata a outro, de modo a possibilitar o fluxo do mico e de outros animais entre as matas antes isoladas, evitando futuras perdas por consanguinidade, por exemplo.
Vídeo sobre os corredores florestais plantados pela equipe do IPÊ:
https://www.youtube.com/watch?v=efyr_LNT6z4&feature=youtu.be-
Este “esverdeamento” programado é, sem dúvida, uma iniciativa de regeneração porque vai além de manter o que ali estava ou apenas recuperar algumas áreas. Ou seja, da sustentabilidade, o mico nos levou a restaurar e enriquecer seu habitat, a regenerar a paisagem (e as pessoas, sempre que possível) como um todo e, assim, trazer de volta a esperança de perpetuação de um habitat com potenciais não só de sobrevivência de muitas espécies, mas de forma a permitir que elas evoluam naturalmente em seus ambientes naturais.
E onde entra educação ambiental?
Na verdade, em todos os passos que lidam com gente a educação ambiental está presente. São as pessoas que causam os danos e por isso são elas que precisam mudar para passarem a valorizar a natureza da região e assim protegê-la devidamente. O leque foi e tem sido amplo. De programas escolares a oficinas para assentados sobre viveiros de espécies nativas e técnicas de reflorestamento, ou para mulheres com bordados e patchwork com espécies regionais. A ideia aqui é dar oportunidade de valorização da natureza e ao mesmo tempo aumentar a renda familiar, que na maioria das vezes é deficitária.
Programas que atingem a comunidade como um todo também fazem parte do que oferecemos e incluem gincanas, festivais de músicas ecológicas, concursos de desenhos e de projetos ambientais com exposições ou eventos em praças públicas. A rádio local foi durante muito tempo um ótimo veículo de comunicação para todas essas iniciativas e para compartilharmos informações importantes, muitas advindas de nossas pesquisas ou de estudos realizados por profissionais diversos. Mas tudo sempre repassado em linguagem acessível a qualquer pessoa. O mais importante nesse processo é contagiar a todos com um senso de admiração e amor pela natureza que se encontra ali e que depende do envolvimento de cada um, ou pelo menos o respeito para que se estanque as agressões que causavam as perdas que ocorreram.
O melhor dessa experiência de mais de 30 anos é que vem surtindo efeito. A educação ambiental tratada de forma ampla e as demais áreas de conhecimento ligadas à conservação reverteram o quadro de perdas para um de regeneração, de esperança e de esverdeamento com melhorias sociais. Isso em uma região economicamente pobre e rica em biodiversidade, mas que havia perdido quase toda a sua cobertura florestal original. O mico passou de criticamente ameaçado a ameaçado, de acordo com a Lista Vermelha da UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza). Sem dúvida é uma experiência que representa luz no fim do túnel. E como costumo dizer: se é possível num local tão cheio de desafios como o Pontal do Paranapanema, creio ser possível em qualquer lugar do mundo.
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