Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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Afrontando o contexto distópico que insiste em desencorajar as utopias, vamos neste e nos próximos artigos optar por recordar àquilo que se aprende de, sobre e em coletividades. Da potência que há na articulação e na mobilização social para transformar. Da força que há na sensibilização para tornar mais efetiva a conservação. Do condão que há no afeto para mudar as pessoas que – como bem nos ensina Paulo Freire – são capazes de transformar o mundo.
Não nos afastaremos em exemplos da onde nos situamos: a coluna Aquáticos. Afinal, parece que os mamíferos marinhos (e as histórias a eles relacionadas) têm um tanto para nos recordar.
Como já comentamos, esforços para a conservação dos cetáceos estão em debate desde o século 20, quando a caça comercial moderna levou a maioria das espécies de grandes cetáceos (incluindo as baleias-verdadeiras e o cachalote) à beira da extinção. Contudo, os primeiros esforços eram autorregulados pela própria indústria baleeira e refletiam apenas respostas de lucro e de mercado frente ao esgotamento dos estoques populacionais das espécies caçadas.
A partir de 1930, por pressão internacional, a indústria baleeira estabeleceu alguns limites na produção de óleo, na captura de algumas espécies já sobre-exploradas e alguns acordos internacionais passaram a gerenciar a indústria. Em 1946, a Convenção Internacional para Regulação da Caça às Baleias (International Convention for the Regulation of Whaling) foi estabelecida com objetivo de possibilitar um desenvolvimento ordenado da indústria baleeira, o que levou a criação, em 1949, da Comissão Baleeira Internacional (International Whaling Commission, IWC), que trouxe diretrizes para a regulamentação internacional da caça costeira e pelágica.
Entretanto, esforços de conservação eficazes surgiram somente entre as décadas de 1960 e 1970. Nesse período, uma moratória global de 10 anos sobre a caça comercial de baleias foi por duas vezes proposta (sem ser adotada pela IWC), produções científicas e culturais sobre os impactos da caça comercial passaram a ser divulgadas e alguns países passaram a adotar as primeiras políticas de proteção aos oceanos e aos mamíferos marinhos.
Mas foi em 1975, quando membros canadenses do Greenpeace se expuseram na primeira ação direta contra embarcações baleeiras, que se acendeu o início do que seria a mobilização social conhecida como Save the Whales. Em barcos infláveis, os ativistas enfrentaram baleeiros, colocando-se entre as baleias e os arpões, na tentativa de impedir à caça das baleias.
Investindo em divulgação, os registros desse acontecimento (e dos próximos que ocorreriam ao redor do mundo) passaram a ser noticiados em importantes redes de televisão e de jornais, ampliando a conscientização e a comoção pública, além das dimensões do movimento Save the Whales. Em diversos países (incluindo o Brasil), ativistas passaram atuar em protestos pacíficos, em campanhas de divulgação e/ou através de enfrentamentos diretos às frotas baleeiras em alto mar, além de pressionar internamente os governos através de lobby e de campanhas políticas.
Assim, por pressão pública e política dos países membros, a IWC deliberou e sancionou uma moratória à caça comercial às baleias em 1982 para entrar em vigor em 1986. Foi uma vitória tática importante do movimento ambientalista, que mundialmente colocou as questões ambientais em pauta, tanto na agenda política quanto na articulação social. Save the Whales se tornou uma das campanhas de conservação mais famosas no mundo e ficou conhecida pela potência do apoio público na obtenção de resultados eficazes de conservação.
Ainda entre os mamíferos marinhos, há outro exemplo de como mobilizações sociais têm potencial para influenciar políticas de conservação: a mortalidade de golfinhos pelágicos pela frota de atum norte-americana no oceano Pacífico Tropical Oriental durante a década de 1960. Este é considerado o primeiro problema de captura incidental (by-catch) a gerar uma intensa atenção pública, incidindo em políticas públicas nacionais e internacionais.
Os atuns – que até os anos de 1950 eram pescados com varas e iscas vivas – passaram a ser capturados por redes de cerco. A mudança na arte de pesca aumentou rapidamente a captura incidental e a mortalidade de golfinhos. Isto porque, naquela região, são comuns associações entre cardumes de atuns e grupos de golfinhos. Contudo, uma vez que a associação atum-golfinho era, inclusive, uma das principais estratégias de detecção dos atuns, as redes de cerco quando lançadas ao redor dos animais capturavam tanto os atuns (espécie-alvo) quanto os golfinhos (captura acessória).
O uso das redes de cerco levou a uma estimativa anual de 370 mil golfinhos mortos entre 1960-1971 e de mais de seis milhões de indivíduos desde o seu início. Isso levou ao declínio populacional do golfinho-pintado-pantropical, do golfinho-rotador e, em menor proporção, do golfinho-comum, entre 1970-1990. Para entendermos a dimensão desse impacto em números, estima-se que durante o século 20 a caça comercial de baleias tenha capturado um total de 2,9 milhões de indivíduos dentre todas as espécies caçadas.
Quando a magnitude dessa mortalidade foi midiaticamente exposta, houve uma comoção generalizada. Tamanha pressão pública levou o congresso norte-americano a aprovar, em 1972, da Lei de Proteção aos Mamíferos Marinhos (Marine Mammals Protection Act, MMPA), assumindo um compromisso sem precedentes na história da conservação de mamíferos marinhos. Destaca-se que, nesse mesmo período, também havia uma indignação pública latente com a matança anual de 100 mil focas (foca-harpa e foca-de-crista) no oceano Atlântico Norte (ocasionada pela divulgação de registros de filhotes de focas sendo mortos) e uma preocupação crescente com a sobre-exploração dos estoques de grandes cetáceos pela caça comercial moderna (como já vimos acima).
A MMPA incluía disposições para reduzir a captura incidental (a partir de uma moratória de dois anos para regulamentação da indústria de atum estadunidense), iniciar pesquisas científicas e incluir observadores a bordo da frota pesqueira e inspecionar embarcações com altas taxas de mortalidade de golfinhos. Modificações nos equipamentos (como a dimensão das malhas das redes ou melhorias nas plataformas de resgate), nos procedimentos (principalmente no desempenho da liberação dos golfinhos) e o treinamento de capitães e tripulações foram estratégias incorporadas. Muitas soluções vieram por parte dos próprios pescadores, enquanto o papel de pesquisadores/as era facilitar o diálogo, testar e validar novas possibilidades. Em 1980, a matança nas redes de cerco das frotas norte-americanas já havia diminuído de 500 mil para 20 mil por ano.
Contudo, como as restrições eram seguidas apenas pela frota estadunidense, outras frotas (como as mexicanas, venezuelanas, equatorianas e panamenhas) aumentaram sua atividade, assim como a mortalidade de golfinhos, mais uma vez. Em 1986, a mortalidade anual voltou a ser de 133 mil golfinhos. Os Estados Unidos passaram, então, a fazer restrições de importação ao atum de países latino-americanos, baseadas nas taxas de capturas incidentais de golfinhos.
Durante o mesmo período, ativistas e organizações não governamentais passaram a exigir o fim da pesca de atum com redes de cerco e a defender o uso de técnicas mais seguras para os golfinhos. Em uma investigação disfarçada, um ativista do Earth Island Institute tornou-se parte da tripulação de uma embarcação panamenha e documentou durante meses a mortalidade de golfinhos pela indústria do atum. As imagens foram amplamente distribuídas, contribuindo para a disseminação da informação sobre os impactos da pesca de atum com redes de cerco nos golfinhos.
Entre o final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, a matança diminuiu novamente em resposta às ações de manejo e pressões econômicas, que foram potencializadas pela mobilização social. Manifestações foram protagonizadas frente às sedes de empresas envolvidas (como, por exemplo, a Heiz, a maior produtora mundial de atum enlatado daquela época), convocando boicotes às empresas e ao consumo de atum enlatado. O conceito da certificação “atum seguro” (dolphin-safe tuna) tornou-se popular nos Estados Unidos e em vários países que importavam o peixe. Tal certificado deveria garantir que o atum vendido fosse capturado a partir de práticas “seguras para golfinhos”.
Em 1990, a fim de evitar fraudes, o congresso estadunidense assinou a Lei de Informação ao Consumidor de Proteção aos Golfinhos (Dolphin Protection Consumer Information Act), formalizando a certificação dolphin-safe tuna. A indústria foi obrigada a adaptar-se e consumidores/as responderam à nova certificação, de modo que as vendas de produtos sem o novo certificado decaíram. Em 1993, aumentou-se a cobertura de observadores de bordo e instaurou-se um cronograma de redução de cotas de captura incidental por espécie e embarcação.
Nos últimos anos, a mortalidade de golfinhos diminuiu para aproximadamente mil animais por ano (por cada estoque populacional), com uma captura incidental anual inferior a 0,1% do tamanho estimado de cada população. Houve uma evidente melhora, mas esta é, ainda, a maior captura incidental de cetáceos documentada no mundo. As populações das espécies de golfinhos, que fortemente sentiram os impactos, se recuperam, ainda, lentamente. Mesmo assim, considera-se a redução da captura incidental dos golfinhos em maior que 99% pela indústria do atum uma história de sucesso na conservação.
Esforços de conservação são multidisciplinares e envolvem, diariamente, ações de muitas pessoas. As histórias acima comentadas – ainda que em recortes históricos e em países com situações socioeconômicas diferentes – nos recordam da potência das mobilizações sociais para a conservação. Mais do que isso, nos recordam que é possível mudarmos, também, as estruturas que nos rodeiam (mesmo quando muitas delas pareçam já estar para sempre instauradas). A potência da mudança no causar transformação é ampliada coletivamente. Necessitamos apenas manter presente a ideia de que a luta pela conservação, hoje, precisa ser socioambiental.
Quanto desses exemplos poderíamos utilizar para refletir sobre as dificuldades que enfrentamos atualmente? Não estamos acompanhando, também, o boto-vermelho ser rapidamente ameaçado pela pesca da piracatinga? Ou a existência de mangues arriscadas pela carcinocultura? Ou a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado devastados pela indústria do agronegócio? Existem denominadores em comum que podem nos ajudar a pensar em estratégias de (re)ação. Precisamos, cada vez mais, discutir coletivamente quais são e como podemos somar forças para a conservação da sociobiodiversidade brasileira.
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