Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Um dos aspectos técnicos intrinsicamente ligado ao ato de soltura é a reabilitação. Apesar de muito se usar essa palavra, afinal do que estamos realmente tratando? O que de significa um animal estar “de fato” reabilitado?
Um dos primeiros aspectos no caminho da reabilitação, e já abordamos sobre isso aqui, envolve a realização da avaliação de escore corporal do animal e a realização de exames clínicos. Também importante é a percepção de deficiências de locomoção ou de empenamento, no caso específico de aves. Essa etapa é definida como “viabilidade biológica”, de acordo com as Diretrizes para Reintrodução e outras Translocações para Fins de Conservação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), de 2014. Um outro instrumento útil para entender bem esse roteiro de avaliação é a recente normativa publicada pelo Ibama, a IN nº 5, de 13 de maio de 2021.
Outro aspecto importante é a conformidade regulatória que envolve espécies destinadas a solturas, regida por vários corpos de legislação legais e infralegais tais como Leis, Resoluções, Decretos e Instruções Normativas. Sobre esse tópico também já comentamos bastante aqui na coluna.
Hoje, gostaria de dar enfoque ao que a IUCN chama de “viabilidade social” do animal a ser solto e como avaliar se está reabilitado ou não para tanto.
Começo transcrevendo o parágrafo:
“As comunidades humanas, dentro ou em torno de uma área de soltura, têm interesses legítimos em qualquer translocação. Esses interesses serão diversos, e as atitudes da comunidade poderão ser extremas e internamente contraditórias. Consequentemente, o planejamento da translocação deve: acomodar as circunstâncias socioeconômicas, as atitudes e valores da comunidade, as motivações e expectativas, os comportamentos e mudanças de comportamento, e os custos e benefícios antecipados da translocação. A compreensão destes é fundamental para o desenvolvimento de atividades de relações públicas, para orientar o público em favor de uma translocação.”
Animais de algumas espécies, quando preparados para soltura, têm um especial interesse no que tange à viabilidade social, já que têm maior potencial para “interferir” no dia a dia das pessoas. Inclusive aqui já publiquei um artigo descrevendo o “calvário” de um caracará após a sua soltura.
Então passemos a análise do parágrafo transcrito acima. As comunidades humanas têm interesses legítimos em qualquer translocação, ou seja, têm interesses legítimos no que tange aos atos de soltura realizados por terceiros. São interesses que poderão gerar atitudes extremas e contraditórias.
Trocando em miúdos, o que isto significa? Vamos agora fazer um pequeno experimento mental e imaginar um exemplo extremo: a soltura de uma onça-pintada. Em particular, essa espécie é tão emblemática, que mesmo a soltura dos indivíduos de vida livre que foram recolhidos nos últimos incêndios no Pantanal (animais que já viviam ali e ali mesmo foram soltos) causou um interesse espetacular da população, inclusive com manifestações de pessoas em redes sociais se autoproclamando “matadores de onças” e, por sinal, com muito orgulho. Serão legítimos os interesses desses que cito aqui que se intitulam “matadores de onças” ou simplesmente “caçadores de animais nocivos”, conforme permite a legislação brasileira atual?
Afinal, qual grupo humano tem o interesse mais legítimo?
Uma das formas mais usadas para justificar a legitimidade, comumente colocada pela sociedade, é a comparação entre espécies. Isto é, uma é considerada “bonitinha” por um grupo e deve ser preservada enquanto outra é considerada perigosa, como a cascavel, e portanto pode ser exterminada. Mas, mesmo entre técnicos, embora tais argumentos não constem da história oficial, aquela escrita nos documentos e autorizações, existe a visão de que soltura de animal A tem preferência a de animal B, pois B pode morder… Como consequência, o animal B fica condenado a passar a vida num “cadeião” de alguma instituição de triagem de fauna, sem condições de manutenção adequada, já que a instituição foi criada para triar e promover a soltura e não para manter espécimes indefinidamente em cativeiro. Mais fácil negar ou ser contra a soltura do que enfrentar o problema…
Será correto destruirmos nossa biodiversidade em nome da preservação do direito de alguns grupos com interesses particulares, seja por nicho de poder ou por pura afirmação do desejo individual de alguém?
Fato é que vivemos uma crise sem precedentes no que tange a destruição da biodiversidade. Não só no Brasil, mas em todo o mundo a biodiversidade vem sendo erradicada colocando em risco a existência da própria humanidade. Nesse caso, cada indivíduo reintroduzido conta! Erradicar espécies por capricho ou negligência poderá nos custar caro, podendo mesmo reduzir as chances de nossos descendentes sobreviverem no planeta.
Assim, voltando às orientações da IUCN sobre a viabilidade social de uma soltura, é também necessário enfrentar os conflitos que os grupos humanos colocam na mesa, pois muitas vezes os animais estão aptos para retorno à vida livre e o ambiente pode abrigá-los, mas as pessoas simplesmente não querem… Porque, bem lá no fundo, animal silvestre é muito lindo lá, longe, sem possível em outro país, e não aqui onde moramos.
É preciso educar as pessoas e, claro, fazer solturas mais técnicas e bem planejadas, mas também é necessário enfrentar sempre, e cada vez mais, a força que certos grupos sociais vêm ganhando em nossa sociedade. Só assim podemos, de fato, dizer que estamos mesmo trabalhando para conservar a biodiversidade brasileira, que até o momento em que escrevo este artigo ainda é uma das maiores do mundo.
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