Racismo ambiental e caça: o efeito rebote das solturas sem diálogo com os locais

Comecemos com uma situação fictícia: cadastrada pelo Ibama, uma dada área de soltura de animais silvestres no interior do Nordeste recebeu, de uma só vez, três macacos-prego (Sapajus sp.) e 23 aves  – 10 canários-da-terra (Sicalis flaveola), sete galos-de-campina (Paroaria dominicana) e seis periquitos-da-caatinga (Eupsittula cactorum). Todos eram vítimas do tráfico de animais silvestres e advindos de centros de triagens, onde passaram por diferentes períodos de reabilitação. As portas das caixas de transporte foram abertas pela manhã, em direção à serra da Morada (nome fictício), que abriga um olho d’água e para onde se presumia que os macacos-prego iriam se encaminhar, e lá, esperava-se, permanecerem.

Mais tarde, no mesmo dia, as aves foram liberadas das suas gaiolas e se espalharam como puderam e conseguiram por outro fragmento de vegetação escolhido, localizado a mais ou menos cinco quilômetros da comunidade mais próxima, Curatá (nome também fictício), de cerca de sete mil habitantes. Animais soltos, problema resolvido.

Agora, acompanhem comigo os dois lados de uma mesma moeda (cara e coroa, respectivamente):

Cara: seu Antônio, 57 anos e residente de Curatá desde nascença, é agricultor e filho de caçador. Sua mulher e seus dois filhos ocupam uma casa na vizinhança, mas na maioria dos dias, seu Antônio reside na casa de colheita localizada próxima à serra da Morada, de onde o homem tira o sustento de sua família a partir do plantio de milho. Milho esse que, de uma hora para outra, começou a ser atacado por um bando de três macacos-prego que apareceu na região.

Para os mais velhos de Curatá não é novidade que na serra havia todo tipo de bicho. Mas macaco descendo a serra? Isso, seu Antônio nunca tinha visto. “O mundo está ficando mesmo louco”, ele pensava. Os filhos ficaram curiosos com a história e quiseram ir até lá, questionando a possibilidade de os macacos estarem com fome.

O menino, que tentou oferecer uma banana com a mão, foi atacado pelo macho assustado do bando e teve que ser levado ao posto de saúde de Curatá – que, por uma infelicidade (lê-se displicência das autoridades locais), não dispunha de vacina antirrábica nem de tétano. Assim, eles precisaram tirar dinheiro da poupança e viajar até a cidade mais próxima – dinheiro esse que era pouco e ia fazer falta, especialmente com a colheita que andava prejudicada. Seu Antônio, enfim, compreensivelmente revoltado com toda essa situação, decidiu que só havia um jeito: para defender a própria subsistência e a da família, ele e seu trabalhador, Ninho, mataram os três macacos com balas de chumbinho. Animais mortos, problema resolvido.

Coroa: Ninho, 29 anos e residente de Curatá também, desde nascença, é auxiliar de agricultor e caçador – essa última atividade, segundo ele, é “só por diversão”. Ninho possui algumas armas e participa ocasionalmente de um torneio local de caça a tatus. Alguns de seus amigos, diferente dele, caçam “por profissão”, coletando e vendendo animais por encomenda e/ou nas rodovias, principalmente passarinhos.

Em Curatá, bem como nos municípios vizinhos, a demanda por canários-da-terra é a maior de todas, principalmente depois que aves da espécie se tornaram, com o tempo, cada vez mais raras. Quando Ninho era pequeno, havia canários por todos os lados, mas naquela época o pessoal gostava tanto que todo mundo queria ter um amarelinho dentro de casa. E assim a caça foi tirando os animais um a um da mata, até que eles viraram raridade.

Mas um dia, “Tirei na sorte grande”, Ninho pensou quando avistou dois canários numa árvore perto de sua casa. “Eu bem que estava precisando desse dinheiro, principalmente agora que a colheita do seu Antônio está indo mal”. Sentindo-se com sorte e aproveitando o dia para caçar ainda mais, Ninho encontrou também dois galos-de-campina e um periquito-da-caatinga, vendendo todos no mesmo dia. Dinheiro ganho, problema resolvido.

Vocês já entenderam onde eu quero chegar?

Há quem pense que “avisar” os moradores locais que animais x ou y vão ser soltos pode, na verdade, “estimular” a caça, fazendo com que caçadores “os procurem”. Mas eu pergunto: se você sabe que naquela região há caça, por que sequer considerá-la como uma possível área de soltura? Ou melhor: você já pensou que essa seria uma boa oportunidade de resolver dois (ou mais) problemas de uma vez só?

Pense bem: o que seria apenas uma expedição de soltura pode (e através deste texto eu defendo que deve) se tornar uma oportunidade de realizar um trabalho não só de fiscalização como de educação e conscientização ambiental. Ora, a viatura do órgão ambiental vai passar naquela comunidade rural de qualquer forma e os caçadores vão ver – então ela não deve só passar, deve também parar. E, de preferência, um(a) educador(a) ambiental deve desembarcar.

Se um não dispõe de muito tempo ou recurso disponíveis para uma ação mais complexa e prolongada, o investimento em panfletos sobre como e quem contatar em caso de conflitos/denúncias relacionadas a animais silvestres já seria de grande ajuda. Por incrível que pareça, às vezes as pessoas apenas não sabem para qual número ligar. A distribuição de placas informativas como “fiscalização ambiental 24h” ou “proteja a natureza” e “proibido caçar” para inibir crimes ambientais também é possível e encorajada (por mim).

Sensibilizar a população é fundamental

Outro exemplo: minha amiga Marianne Bello, em seu projeto Bugios da Ilha (RJ), teve a brilhante ideia de desenvolver e distribuir um adesivo de “Protetor dos Bugios” para empoderar as crianças na proteção dos primatas. E funciona! Ações pontuais podem parecer pequenas para alguns, mas você há de concordar comigo que, frequentemente, são as coisas simples da vida que fazem a diferença.

Em um mundo ideal, animais vítimas do tráfico seriam soltos o mais longe possível de qualquer construção antropogênica, mas sabemos que a realidade é outra. Está cada dia mais difícil encontrar regiões onde a mata é primária e intocada e onde a natureza é e sempre foi protegida. Em resumo, tem gente em todo lugar. E, basicamente, onde tem gente, tem tráfico de fauna e caça. Por isso (mas não só), fechar os olhos para a população e fingir que ela não existe é ilógico.

Não há nem deve haver alternativa se não entrar em diálogo e trabalhar com os locais, pois queira você ou não, ali a terra é mais deles do que nossa e a verdadeira conservação é feita através da união entre pessoas. É preciso fazer o mínimo e o óbvio: avisar o que estamos indo fazer, pedir colaboração e nos colocar à disposição. E depois de algumas operações na região do interior rural do Ceará, eu posso afirmar, com alguma experiência, que é simples assim.

Mas sabendo que a problemática a que eu me referi ao longo deste texto é, muitas vezes, vista não como um sintoma de um problema maior, mas como um argumento para culpabilizar um órgão sucateado que, de uma forma ou de outra, precisa dar vazão aos infinitos animais que são resgatados e apreendidos, eu não poderia deixar de fazer um último disclaimer: os atuais temas de controvérsias sobre como é feita a destinação prioritária por lei da fauna silvestre (isto é, o retorno à natureza) existem em grande parte por um único motivo. E o motivo é a falta de pessoal e capital nos órgãos ambientais como o Ibama.

Para mitigar essa lacuna institucional, em vários estados do Brasil existem colaborações frutíferas e eficazes entre essas autarquias e organizações do terceiro setor, como ONGs. Mas especialistas e pesquisadores de universidades carecem dessa mesma iniciativa. Por vezes, os cientistas que criam nome publicando artigos ou desenvolvendo planos de manejo de uma população, livre ou cativa, de uma espécie x, escolhem fechar os olhos para o que acontece com outras populações do mesmo bicho. A dúvida que fica é se toda essa “preocupação” com a conservação da espécie, no final das contas, é orientada aos animais e natureza, ou ao próprio N amostral.

Por fim, eu gostaria de falar diretamente com aqueles que afirmam que os caçadores não são inocentes e que a punição é a melhor educação ambiental. Talvez. Principalmente em casos como os dos amigos do nosso personagem fictício, Ninho. Mas e no caso do seu Antônio? De quem foi o erro? Quem estava errado?

Alegar que todo e qualquer morador rural, indígena ou descendente de quilombola caça indiscriminadamente como que por “sadismo” é preconceito e discriminação; é racismo. E usar disso como justificativa para fazer, sem qualquer diálogo, solturas de animais silvestres (ou qualquer outra ação) na mata que “é deles” é racismo ambiental.

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