
Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Esta coluna se chama Segunda Chance e trata das ações de soltura de animais silvestres da fauna nativa brasileira. De fato, para hoje, tinha preparado um artigo sobre a importância de anilhar passeriformes destinados a soltura. Porém, diante da situação dramática das queimadas em todo o país, não é possível manter a rotina e agir como se nada houvesse.
Assim, prezado leitor, tomo a liberdade de iniciar uma reflexão sobre algumas razões que julgo pertinentes para entendermos por que chegamos a este estado de coisas e também para refletir sobre a própria ação de soltura: como será possível devolver animais para um ambiente calcinado, deliberadamente esterilizado pela ação humana?
Eu nasci e cresci em um tempo em que queimadas e a derrubada da floresta eram transmitidas pela televisão, ao vivo e a cores, como sinal de progresso. De fato, além das vivas cores do fogo, o que era novidade pois as imagens até os anos de 1970 nas transmissões de TV eram preto e branco, me vem na memória o som do estalido das grandes árvores amazônicas vindo ao chão. Tudo isso, caro leitor, era comemorado! Mas claro, estamos falando do passado.
Será mesmo?
Com as queimadas, têm circulado vários vídeos de pessoas abnegadas, até mesmo chorando, fazendo o resgate de animais, combatendo o fogo ou simplesmente enterrando os animais mortos que já somam milhares. Mas também têm circulado imagens de pessoas ateando fogo ao pasto. Assisti a um, com um homem jovem em um trator, cujo implemento de arado foi transformado em um equipamento para atear fogo e o sujeito, aos gritos, como em um rodeio, seguia “feliz da vida” ateando fogo em tudo.
Evidentemente que esse tipo de coisa não á para ser compartilhada, mas não é possível ver algo assim sem, primeiro, ficar absolutamente indignado e, em segundo, não refletir sobre por que a visão de “progresso” continua sendo a da década de 1970!
E aí temos que fazer uma consideração: gado dá dinheiro e nunca deu tanto, principalmente com as vendas aquecidas para a China e para os países asiáticos e árabes que compram os animais vivos! Ou seja, além das queimadas e destruição associadas a esse tipo de pecuária, tem o sofrimento adicional dos animais embarcados vivos que, dependendo do local de destino, são mantidos em porões navais por cerca de um mês, “de certo comendo feno fresco e tomando água limpíssima todos os dias…” Perdão, caro leitor e leitora, às vezes a ironia é a única forma de suportar tanta violência.
Mas voltemos ao negócio chamado “gado”. Esse tipo de pecuária, uma vez que a demanda está aquecida, depende de cada vez mais área e, claro, imagine o que um parque ou reserva significa em termos de “perda” de área! Vejam que após as primeiras chuvas, com toda a matéria orgânica que ficou sobre o solo queimado, a braquiária e outros tipos de gramíneas “úteis para o gado” vão fazer a festa e aí é só soltar a “boiada”. E ainda temos que entender que o hoje o Brasil se consolida como exportador de commodities, ou seja, proteína animal, proteína vegetal e ferro.
Nesse cenário, o ecoturismo atrapalha. A floresta é um estorvo e o campo é um negócio, uma fábrica de dinheiro para nossas elites. Os efeitos das queimadas neste ano de 2020 serão sentidos e percebidas por todos nós, que não fazemos parte do lucrativo “agronegócio”, por décadas.
A reflexão vai novamente no sentido de perguntar que lições não aprendemos de 1970 até agora e por que, mesmo com toda a devastação, ainda assim, como sociedade, toleramos este estado de coisas?
Uma das razões para esse estado de coisas pode estar no conceito de “cegueira de vegetação” em inglês “plant blindness”, termo descrito por Wandersee e Shussler em 1999. A ideia é a de que consideramos a vegetação inferior aos animais. Nosso cérebro foi desenhado para perceber movimento e como plantas se movem pouco em relação aos animais, simplesmente ignoramos o reino vegetal. Em recente artigo científico, pesquisadores investigam a relação do tráfico ilegal de flora com esse conceito. Vale a leitura.
O que não vemos, não existe! Como a cor verde é facilmente identificada por nossa retina, colocamos toda a vegetação em um único plano de fundo, ou seja, literalmente “deixamos de enxergar” essa essencial parte de nosso ecossistema que sem a qual em breve nossas “elites do agronegócio” vão descobrir também não haverá agronegócio. Fico imaginando como será produzir carne ou soja sem chuvas regulares e com temperaturas na casa dos 52ºC!
Aí vem a segunda reflexão de hoje: como soltar animais neste momento onde não há vegetação e, consequentemente, não há alimento para eles forragearem? Uma das estratégias que tenho abordado aqui é a de que sem comedouros de suporte as chances de sobrevivência diminuem. Em minha rotina, boa parte do tempo é gasto enchendo comedouros e bebedouros nas áreas externas aos locais de soltura, inclusive pensando nos animais noturnos como gambás e corujas.
Sim amigo leitor, além de urubus, também sou fá dos gambás! Ok, comedouro para gambás tudo bem, vão ajudar. Mas e corujas, por exemplo?
A maior parte das corujas preda outras aves, mas também predam insetos e roedores. Assim, é preciso recuperar as funções ecológicas das florestas. Florestas sem roedores, insetos carnívoros e necrófilos (besouros) não é floresta.
Uma das estratégias é usar uma fonte de luz para atrair mariposas, o que funciona muito bem para corujas-do-mato. A outra estratégia vem do monitoramento da qualidade da floresta que vai informar que tipo de população de roedores e de insetos está presente.
E assim finalizo minha segunda reflexão: não basta recuperar, reabilitar e soltar. Temos que soltar em florestas regeneradas e que possam prestar, de verdade, os serviços ecossistêmicos necessários à manutenção da vida, tanto daqueles que foram soltos como da nossa.
Estamos assistindo, exatamente agora, um dos maiores “ espetáculos de destruição da vida”.
A imagem do artigo de hoje é, simplesmente, a chuva.
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