Por Elisa Ilha¹, Ignacio Moreno² e Yuri Camargo³
¹Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
²Biólogo, mestre e doutor em Biociências. É professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde atua no Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar)
³Biólogo, especialista em Inventariamento e Monitoramento de Fauna e mestre em Biologia Animal. É pesquisador do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos da UFRGS e integrante do do Projeto Botos da Barra do rio Tramandaí.
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Entre 2021 e 2030, adentramos na Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como Década do Oceano. A iniciativa pretende ampliar a conscientização global sobre a importância dos oceanos e mobilizar pessoas, organizações e governos em ações que impulsionem a saúde, a conservação e a sustentabilidade do ambiente marinho.
As “décadas” propostas pela Organização das Nações Unidas (ONU) são movimentos intergovernamentais que reúnem os diferentes países-membros e estão relacionadas aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (previsto na Agenda 2030) – aqui, em especial, o Objetivo 14: Vida na Água.
No Brasil – sob responsabilidade do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações (MCTI) – a Década do Oceano buscará incentivar reflexões, diálogos e a cooperação entre atores públicos e privados (como cientistas, gestores, políticos, organizações intergovernamentais e não governamentais) e a sociedade civil sobre o uso, a gestão e a proteção do espaço costeiro e marinho no país.
Além de serem fundamentais para a regulação climática e para a saúde e bem-estar da vida na Terra, os oceanos fornecem alimento e condições de vida para mais de três bilhões de pessoas no mundo e abrigam a maior biodiversidade existente entre os ecossistemas do planeta. No Brasil, um em cada quatro brasileiros vive nas zonas costeiras e de cada 200 brasileiros um é pescador.
A riqueza da vida marinha é, portanto, também uma riqueza cultural. Pescadores artesanais são parte da sociobiodiversidade brasileira e salvaguardar seu direito aos territórios e às territorialidades é essencial para garantir a conservação dos ecossistemas aquáticos e da vida na água.
As oportunidades de participação em espaços de discussão e de tomada de decisões, entretanto, estão entre os maiores desafios que se apresentam na formulação de políticas de gestão e manejo pesqueiro e no ordenamento costeiro.
A maioria dos governos – sejam municipais, estaduais ou nacional – segue projetando e implementando planos desenvolvimentistas que ignoram os interesses e as demandas das comunidades tradicionais, da conservação da biodiversidade e dos impactos ambientais e sociais. Isso não apenas compromete os compromissos políticos internacionalmente assumidos, como também inviabiliza a premissa de sustentabilidade que deve ser incorporada.
Um exemplo disto – e atualmente em discussão – é o projeto de construção de uma nova ponte entre os municípios de Tramandaí e Imbé, no litoral norte do Rio Grande do Sul, que ameaça diretamente a pesca cooperativa, os pescadores artesanais de tarrafa e os botos-de-Lahille (Tursiops gephyreus).
A pesca cooperativa entre pescadores artesanais e botos ocorre na desembocadura do estuário do rio Tramandaí desde, pelo menos, a década de 1960, em um território tradicional de pesca artesanal. Desde então, uma relação entre gerações de pescadores artesanais e gerações de botos-de-Lahille vem sendo tecida, constituindo uma interação interespecífica com características que a tornam única no mundo. Devido a sua importância socioambiental, os botos foram tombados como patrimônio natural do município de Imbé já na década de 1990 (Decreto nº 49/1990).
A desembocadura do estuário do rio Tramandaí, popularmente conhecida como “barra”, está inserida em um contexto urbano em constante transformação. Há anos, os municípios que costeiam suas margens – Tramandaí ao sul e Imbé ao norte – vêm sofrendo com os impactos decorrentes do aumento da população e das taxas de urbanização, sem contar com um planejamento de infraestrutura e/ou de gestão adequados.
Nesse cenário, um dos principais problemas relatados é o aumento no fluxo de trânsito nos meses de verão no entorno da (já existente) ponte Giuseppe Garibaldi. A construção de uma nova ponte rodoviária sobre o estuário tem sido apontada como a única solução para os problemas de mobilidade urbana que se intensificam na temporada de veraneio.
Desde o início dos anos 2000, alguns atores políticos da região se mobilizam para a construção de uma nova travessia entre os dois municípios, através da proposição de um projeto conhecido como Avenida do Litoral. Esse projeto, entre outros planejamentos urbanos, propôs quatro alternativas de traçado à ponte Giuseppe Garibaldi, sendo uma delas próxima à barra.
Em 2015, a publicação do projeto foi incluída no plano plurianual de desenvolvimento estratégico do Rio Grande do Sul para o triênio 2016-2019. Três anos depois, foi aprovado no orçamento federal uma quantia de aproximadamente R$ 2,8 milhões para a elaboração de um projeto que previsse a construção da nova ponte.
No início de 2021, a empresa Beck de Souza Engenharia foi contratada pela prefeitura de Imbé para efetuar os estudos técnicos do projeto de travessia através de um convênio com a União. Notícias nas mídias (principalmente nas plataformas Litoral na Rede e Jornal do Comércio) têm trazido algumas informações sobre as propostas de traçados apresentadas à prefeitura de Imbé pela empresa.
Em agosto deste ano, as notícias indicaram que, dos seis traçados inicialmente propostos, dois foram selecionados para estudos de viabilidade e estimativas orçamentárias. Um deles, estimado em R$ 34 milhões, é sobre a barra do rio Tramandaí (opção A, com 180 metros), enquanto o outro, estimado em R$ 142 milhões, é planejado sobre a laguna Tramandaí (opção B, com 1.600 metros). Esse último, apesar da maior dimensão ajudaria a desviar o trânsito da área central das duas cidades.
A proposta apresentada mais barata é um binário – ou seja, uma ponte com duas vias e de sentidos de trânsito opostos, com passagem de pedestres – previsto para construção exatamente sobre uma das principais áreas onde a pesca cooperativa acontece.
As notícias também anunciam – segundo depoimento do engenheiro da secretaria municipal de Obras e Viação – que os trabalhos estão “em fase bastante adiantada” e que as próximas etapas serão a apresentação de estudos aprofundados sobre os traçados com a posterior contratação do projeto executivo com orçamentos.
Entretanto, os relatórios entregues à prefeitura de Imbé não foram disponibilizados publicamente, nem as opções de traçados estão sendo apresentadas e discutidas com a sociedade. A ausência de participação popular na tomada de decisões desrespeita os princípios básicos do processo de licenciamento. Ela foi, inclusive, identificada como o principal impacto negativo para a comunidade local por uma pesquisa recentemente realizada que avaliou os impactos ambientais da execução de projetos de pontes rodoviárias neste estuário.
As ações e os processos construtivos desse tipo de empreendimento podem afetar negativamente a biodiversidade e a população local através do aumento do ruído e da vibração, da expropriação de moradias e o reassentamento involuntário (com consequente gentrificação) e da perda de habitat nas áreas de influência da construção.
Existem diversos estudos que revelam, ainda, os impactos negativos do aumento das taxas de urbanização desordenada e do aumento da especulação imobiliária decorrentes desse tipo de empreendimento. Ainda, sem a consulta e sem a participação da população local – que tem se mostrado contrária -, o município de Imbé também aprovou, em 2013, modificações no Plano Diretor para permitir a construção de prédios verticais nos arredores do rio Tramandaí. A primeira edificação construída está localizada em uma Área de Preservação Permanente.
A barra do rio Tramandaí é uma Área Prioritária para a Conservação da Biodiversidade brasileira, fundamental para o ciclo de vida de diversas aves migratórias (inclusive de espécies ameaçadas) e de diversas espécies de pescados que possuem importância econômica e cultural para a pesca artesanal.
Os botos-de-Lahille são uma espécie endêmica do oceano Atlântico Sul Ocidental, classificada como vulnerável à ameaça de extinção e a desembocadura do estuário é um habitat crítico para uma de suas populações. Atualmente, são identificados 13 botos residentes, que utilizam a barra para se alimentar, se reproduzir, cuidar e ensinar seus filhotes. Eles também fazem parte da história socioambiental do estuário e são reconhecidos pelos pescadores há décadas.
Ao redor do mundo, há inúmeras evidências de como os padrões de ocupação de populações de odontocetos (botos e golfinhos) podem ser afetados por pontes. Durante a fase de construção, por exemplo, os botos podem sofrer com a ampliação do ruído ambiental, que pode interferir em suas estratégias de comunicação, comportamentos e busca por alimentos. Já na fase de operação, os odontocetos podem ser afetados pela modificação dos padrões de ocupação do estuário devido às fundações da ponte sob o estuário, que poderia atuar como uma barreira para sua movimentação.
Nos Estados Unidos, por exemplo, há evidências de uma população do golfinho-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus) em que as fêmeas abandonaram um habitat crítico no entorno da construção de uma ponte na enseada de John Pass. Essa estratégia – que parece ter sido um mecanismo para a proteção dos filhotes – ameaça o sucesso reprodutivo.
Já em Laguna, Santa Catarina, onde também ocorre a pesca cooperativa, indivíduos de um dos grupos residentes do boto-de-Lahille (que não realiza a captura da tainha junto aos pescadores artesanais, o grupo “não-cooperativo”) abandonaram a área de influência de uma nova ponte no interior do estuário. Quatro anos após a construção dessa estrutura, o grupo “não-cooperativo” passou a ocupar outras áreas do estuário, como a desembocadura, onde antes estava presente apenas um outro grupo de botos (o grupo “cooperativo”), que efetua a pesca da tainha junto aos pescadores artesanais (tal como ocorre na barra do rio Tramandaí). A construção dessa ponte desencadeou, assim, uma competição territorial e por alimento entre esses grupos (“cooperativos” e “não-cooperativos”), resultando em impactos negativos para ambos.
Além disso, a pesca cooperativa é um patrimônio social e cultural em processo de registro no Livro de Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e protegida pela Lei nº 15.546/2020 como de relevante interesse cultural no Rio Grande do Sul. Os pescadores artesanais – enquanto comunidades tradicionais – devem ter seus direitos territoriais assegurados por lei. Ademais, no município de Tramandaí, a Lei nº 4.149/2017 considera um patrimônio cultural de natureza imaterial a pesca profissional artesanal.
Embora a ponte seja defendida por alguns políticos como uma obra necessária para os dois municípios e para a região, há informações disponíveis que não estão sendo levadas em consideração. Muitos dos problemas locais de trânsito poderiam ser sanados com a reforma da já existente ponte Giuseppe Garibaldi (que possui quatro pistas, sendo duas em cada sentido) e a partir de um ordenamento viário objetivando melhorar a mobilidade urbana.
Pesquisas de urbanismo indicam que, modificando o sistema atual através da criação de um sistema binário sem cruzamentos, é possível diminuir os engarrafamentos recorrentes, uma vez que os veículos que se deslocam entre os municípios necessitam cruzar uns na frente dos outros. De forma complementar, uma reacomodação da passagem de pedestres (que precisam cruzar as vias para atravessar a ponte pela pista do meio, ocasionando constantes freadas dos veículos), ajudaria a manter o fluxo mais dinâmico, diminuindo a lentidão observada. Já em nível regional, o trânsito de grandes veículos, como caminhões, poderia ser realizado pela estrada do Mar, o que aumenta em apenas 7,2 km a distância (ou 5-10 minutos a mais), entre a cidade de Osório e a prefeitura de Imbé, por exemplo.
Tais modificações podem ser consideradas mais sustentáveis, pois geram menores impactos sociais, econômicos e ambientais. O valor da obra poderia ser (re)destinado, por exemplo, à implementação de ciclovias (incentivando o uso bicicletas que já são utilizadas diariamente por inúmeras pessoas) e na reurbanização dos espaços públicos, valorizando as belezas cênicas e naturais, a história e cultura socioambiental do litoral norte gaúcho.
A construção de pontes rodoviárias não afeta apenas o local de construção, mas todo o seu entorno. Portanto, para atingir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ou mesmo as metas da Década do Oceano nas áreas costeiras do país, é imprescindível que os espaços de participação e de tomada de decisão sejam oportunizados e ampliados para toda a sociedade e durante todo o processo de um empreendimento.
Pensar em cidades para o futuro requer repensar o ambiente urbano através da valorização das paisagens naturais e das práticas culturais locais. Redesenhar as cidades de Imbé e Tramandaí, reaproveitando e revitalizando a ponte Giuseppe Garibaldi e seu entorno, não apenas ajuda a dialogar com os objetivos e metas assumidos pelo país, mas também pode estreitar “pontes” mais duradouras entre municípios vizinhos, sem causar danos à rica diversidade biológica e sociocultural da região.
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