Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
invertebrados@faunanews.com.br
Caramba, que mês foi esse tal de outubro de 2022, hein? Especificamente no meu caso, foram dois mini ataques do coração por conta da participação de meu time em duas finais de copas de futebol masculino. Por falar em copa, vem aí a Copa do Mundo, evento que mobiliza bilhões de corações, isso em um planeta que acabou de atingir o insustentável patamar de oito bilhões de habitantes humanos.
E, se você é um desses corações apaixonados pelo velho esporte bretão, não deixe de ler sobre a curiosa presença dos insetos no futebol, que já foi tema de nossa conversa neste espaço [1]. Outubro teve também a eleição mais importante da nossa história e fica aqui um agradecimento muito especial por vocês terem votado pelos insetos, conforme tanto pedimos [2] [3]. E também pelos outros bichos, pelas plantas, fungos, protistas, bactérias… Vocês votaram pela vida. Ganhamos uma nova esperança.
Nossa conversa de hoje tem um ponto de partida específico. Após ter lido, aqui na coluna Invertebrados, o sempre competente texto da pesquisadora Claudia Xavier, dando uma verdadeira aula sobre carrapatos, estava eu assistindo na TV o jogo (sofrível!) do Flamengo contra o Juventude, em Caxias do Sul (RS), enquanto mantinha o Twitter aberto para acompanhar os comentários sobre a partida. Apareceu para mim a postagem de divulgação da coluna – aliás, é muito legal o trabalho que a equipe do Fauna News faz de divulgação dos nossos conteúdos. Vendo do que se tratava, tratei logo de compartilhar (ou “retuitar”), ainda que, imerso no jogo do Flamengo, não tivesse lido a postagem (“tuíte”) específica. Afinal, eu já sabia do conteúdo.
Bom, tinha um erro no texto da postagem, algo bem comum na percepção popular: os carrapatos foram tidos como “insetos”. Realço que só no texto da postagem mesmo, obviamente que não na coluna em si. Isso acontece, coisa absolutamente normal. Bem como é absolutamente normal e desejado que se alerte para o erro. Assim foi feito pelo pessoal que segue e, logo depois, tudo foi corrigido. É sempre preciso estar atento(a) e forte (obrigado por tudo, Gal Costa!), no melhor dos sentidos, conforme foi o caso.
A curiosa ocorrência no Twitter me fez lembrar que, ao longo do tempo, os aracnídeos muitas vezes estiveram juntinhos aos insetos, não só na percepção popular, mas também nas classificações taxonômicas. Aracnídeos e insetos estão dentro do grande filo Arthropoda, os artrópodes. O que, pelo gigantismo superlativo de um grupo com mais de um milhão de espécies descritas e, segundo estimativas, entre 50 e 100 milhões de espécies por descrever, não quer dizer muita coisa.
As classificações mais aceitas atualmente colocam insetos e aracnídeos em lados opostos dentre os artrópodes. Aranhas, escorpiões, carrapatos e demais aracnídeos são classificados em Chelicerata, enquanto os insetos, misturados aos crustáceos, estão em Pancrustacea. Complicações normais de sistemas de classificação que, cada vez mais, tentam retratar as relações naturais.
Ainda assim, mesmo em tempos recentes, é comum que as sociedades de Entomologia (o ramo da Zoologia dedicado ao estudo dos insetos) bem como suas respectivas revistas científicas aceitem artigos e contribuições que versem sobre artrópodes “não-insetos”, com papel de destaque para as aranhas. Lembro bem que no início da carreira, ainda nos tempos das revistas impressas e enviadas pelo correio, eu e meus amigos de estágio aguardávamos ansiosamente a chegada do mais recente número da Revista Brasileira de Entomologia, ávidos pelas novidades. Em muitas oportunidades, ficávamos boquiabertos diante das primorosas ilustrações (presumivelmente feitas a lápis, isso em um tempo de desenhos científicos a nanquim), representando pedipalpos de aranhas, nos artigos do professor Antônio Brescovit (Instituto Butantan – SP) [5]. Isso em uma revista de Entomologia!
Nos dias de hoje, em grupos de exaltação e identificação de insetos nas redes sociais, como os excelentes “Insetos do Brasil” e “Entomologia Brasileira”, no Facebook, já mencionados aqui [6], é corriqueira a postagem de fotos de aranhas e escorpiões com pedidos de determinação e, quase sempre, de informações acerca da periculosidade. Via de regra, essas postagens são bem recebidas, dentro do bom e velho espírito da camaradagem artropodológica, com uma ou outra exceção um pouco mais mal-humorada que questiona não ser melhor mudar logo o nome do grupo para “Artrópodes do Brasil” e “Artropodologia Brasileira”, respectivamente.
Essa flexibilização acadêmica é bem seguida no campo da Entomologia Cultural, conceito iniciado pelo estadunidense Charles Hogue [7] [8] e ampliado pelo espanhol Victor Monsserrat [9]. Tal conceito abriga o estudo da presença simbólica e da importância de insetos e quaisquer outros artrópodes nas manifestações culturais humanas. Sim, todos os artrópodes são passíveis de abordagem dentro de um campo de estudo acadêmico submetido ao domínio da Entomologia. Vale destacar que, para não se ferir purismos e susceptibilidades, pode-se utilizar o termo Artropodologia Cultural para esse campo de estudo.
Na Etnoentomologia, tema também já abordado aqui neste espaço [10], a inclusão de outros artrópodes no conceito de “inseto” é referendada pela percepção popular. Na impressionante obra “Por que o marimbondo tem a cintura fina? A contribuição da pesquisa etnoentomológica para o entendimento das relações dos seres humanos com os insetos”, publicada recentemente na revista A Bruxa [11], o professor Eraldo Medeiros Costa Neto (Universidade Estadual de Feira de Santana – BA) nos ensina que diferentes populações humanas incluem aranhas, escorpiões centopeias, caranguejos e outros artrópodes, além de vermes, moluscos e até vertebrados, como cobras, sapos e ratos, na etnocategoria “inseto”.
Ainda segundo o professor Eraldo, cada vez que a palavra inseto é mencionada, de um modo geral as pessoas pensam logo naqueles animais que lhes são desagradáveis. Isso é aproveitado pelas indústrias produtoras de praguicidas, que faturam alto lançando venenos que podem até combater as chamadas pragas, mas também afetam indiscriminadamente o meio ambiente como um todo.
A percepção popular negativa para com os insetos fica clara quando se percebe sua utilização como xingamento. Dentro da cultura pop, o personagem com inspiração em aranhas de maior notoriedade é o Homem-Aranha, um tremendo fenômeno de popularidade. Quando os super vilões inimigos do herói aracnídeo querem ofendê-lo ou ridicularizá-lo, o xingam de “inseto”. Isso pode ter muito a ver com a tradução da palavra em inglês “bug”, que significa percevejo (nome comum aos integrantes da ordem Hemiptera, grupo Heteroptera), inseto em geral ou até mesmo qualquer bicho que, de alguma forma, lembre inseto.
Mas tenho por mim que o apelido de inseto dado ao Cabeça de Teia da Marvel é mesmo um mero xingamento, meio que como que dizendo que ele, mesmo com todo os seus poderes e heroísmo, pode vir a ser esmagado tal e qual um inseto. Não deixa de ser curioso perceber que mesmo as aranhas, grupo que igualmente não goza de simpatia popular [12], podem ser ainda mais diminuídas se alcunhadas como insetos. Isso é uma pequena mostra do quão necessário é o trabalho de divulgação científica em relação aos seres mais numerosos do planeta.
Dentro das abordagens relacionadas à Entomologia e Zoologia Cultural que eu e alguns colegas fazemos, especialmente no campo educacional, sempre enfatizamos que mesmo os erros, ou “incorreções biológicas”, como costumamos mais chamar [13], podem ser muito bem utilizados para se fazer uma divulgação, mediante os devidos ajustes, é claro. O presente texto teve como objetivo mostrar um exemplo prático dessa utilização. Inseto é inseto, aracnídeo é aracnídeo, isso nos ensina a Ciência. Mas, a partir das misturas que, deliciosamente, só a percepção popular é capaz de propiciar, dá para se falar de muitas coisas. Experimentem.
Aproveito para fazer dois convites mais do que especiais. O primeiro é sobre vacinação. Se você ainda não tomou a quarta dose da vacina contra Covid-19, por favor não perca tempo: procure um posto de saúde e providencie a atualização de seu esquema vacinal. É importante demais não só em termos individuais, mas, principalmente, como estratégia coletiva de saúde.
O outro convite é em relação ao VII Colóquio de Zoologia Cultural, que ocorrerá nos dias 17 e 18 de dezembro de 2022, no YouTube. Todas as informações acerca do evento, que versa sobre a associação entre Ciência (no caso, a Zoologia) e Cultura, podem ser obtidas no site da revista A Bruxa. Vamos ter um elenco maravilhoso de palestras, que, em breve, começaremos a divulgar, bem como apresentação de trabalhos em temas livres e artes. Estamos no finalzinho do prazo de submissão de resumos, que vai só até o próximo domingo, dia 20. Fica a dica: veja o jogo de abertura da Copa do Mundo e, logo depois, mande o seu trabalho para a gente!
Referências
[1] https://faunanews.com.br/2021/06/16/tai-o-que-voce-queria-o-futebol-dos-insetos/
[2] https://faunanews.com.br/2022/09/21/insetos-nao-estao-a-venda-parte-1/
[3] https://faunanews.com.br/2022/10/19/insetos-nao-estao-a-venda-parte-2-negacao-da-ciencia/
[4] https://faunanews.com.br/2022/11/09/sobre-carrapatos-conhecendo-um-pouco-da-familia-ixodidae/
[5] Brescovit, A.D. 1993. Thaloe e Bromelina, novos gêneros de aranhas neotropicais da família Anyphaenidae (Arachnida, Araneae). Revista Brasileira de Entomologia 37(4): 693-703.
[6] https://faunanews.com.br/2021/12/15/retrospectiva-2021-e-2020-insetos-no-facebook/
[7] Hogue, C.L. 1980. Commentaries in cultural entomology I. Definition of cultural entomology. Entomological News 91(2): 33–36.
[8] Hogue, C.L. 1987. Cultural entomology. Annual Reviews of Entomology 32: 181–199.
[9] Monsserrat, V.J. 2012. Los artrópodos en la mitología, la Ciéncia y el arte de Mesopotamia. Boletín de la Sociedad Entomológica Aragonesa 51: 421-425.
[10] https://faunanews.com.br/2022/07/19/etnoentomologia-entrevista-com-o-professor-eraldo-medeiros-costa-neto/
[11] Costa Neto, E.M. 2022. Por que o marimbondo tem a cintura fina? A contribuição da pesquisa etnoentomológica para o entendimento das relações dos seres humanos com os insetos. A Bruxa 6 (especial 2): 56p. https://www.revistaabruxa.com/_files/ugd/b05672_e043d8ac5727451ab0c579e8e5d5886e.pdf
[12] https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Urutagua/article/view/24872
[13] Coelho, L.B.N. & Da-Silva, E.R. 2015. Análise de “Minúsculos: o Filme” à luz da biologia animal. In: Cassab, M. et al. (ed.). Anais do Encontro Regional de Ensino de Biologia – Regional 4. Universidade Federal de Juiz de Fora, 13 p.
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