Por Karlla Barbosa
Bióloga, observadora de aves, mestra em Conservação Ambiental e Sustentabilidade e doutora em Zoologia
observaçãodeaves@faunanews.com.br
Você já parou para pensar que até mesmo para detectar doenças os observadores de aves podem ajudar?
Vírus, bactérias e outros microrganismos são seres microscópicos, mas podem causar problemas gigantescos. Nem mesmo os grandes vilões da ficção científica conseguem causar tanta devastação quanto esses vilões invisíveis a olho nu foram capazes, como pudemos ver com a peste bubônica, a malária ou, agora, com a Covid-19. Ao longo da história, as pesquisas científicas têm contribuído muito para o nosso conhecimento sobre como funcionam as interações entre hospedeiro e parasita. Vimos, também, com a própria Covid, as alterações sintomáticas que as doenças causam nos hospedeiros.
Mas qual a relação disso com os passarinhos e os observadores de aves? Bem, os cientistas só descobrem algo porque observam e buscam repostas para suas perguntas, mas qualquer pessoa pode estar atento a mudanças e reportar sobre elas. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos quando, no ano de 1994, participantes do FeederWatch (projeto de observação de comedores de aves), em Washington D.C., começaram a relatar que os House Finches, pequenos passarinhos que visitam comedouros nos jardins das casas, estavam aparecendo com os olhos inchados, vermelhos e com crostas. Informados sobre essas alterações nas aves, pesquisadores realizaram testes de laboratório que revelaram a causadora das anomalias: Mycoplasma gallisepticum, uma bactéria que acarreta um tipo de conjuntivite nas aves. Fato é que essa infecção se espalhou rapidamente pela costa leste do EUA, deixando as aves apáticas, quase todas cegas e vulneráveis a predadores.
Como resultados dessas observações, foi publicado um estudo na revista científica PLOS Biology relatando o potencial devastador dessa doença para as aves. Em entrevista ao laboratório da Universidade de Cornell, um dos autores do estudo, André Dhondt, foi mais além e disse que “naquela época, havia uma grande preocupação da doença atingir as aves migratórias que vão para a América do Sul e então todas as aves da região poderiam ser infectadas”.
Os pesquisadores foram além e utilizaram dados dos observadores de aves e experimentos de laboratório para avaliar o potencial da infecção nos Estados Unidos. Eles encontraram que o Mycoplasma era menos contagioso no início do seu aparecimento, porém se intensificando rapidamente. E que era menos contagiosa também na medida em que as populações das aves ocorriam de forma mais esparsas na região leste (um ótimo exemplo da importância do distanciamento social). O estudo mostrou que ocorreram mudanças rápidas na virulência após a emergência do patógeno e uma subsequente evolução dessa virulência de curto prazo. O interessante é pensarmos que isso provavelmente opera em outros patógenos emergentes da vida silvestre e nos humanos.
A doença ocular dos House Finches acabou matando metade da população urbana desse passarinho na costa leste norte-americana, infelizmente. Os resultados da parceria entre observadores de aves e cientistas proporcionaram uma verdadeira compreensão de como um patógeno, como Mycoplasma gallisepticum, pode ser tão destrutivo. Além disso, reforçaram a importância da rápida detecção e compreensão dos mecanismos de transmissão para prevenção de futuras epidemias entre humanos.
Os cidadãos cientistas podem ajudar, e muito, na luta contra os vilões mais poderosos do mundo: os microrganismos causadores de doenças. Então, para continuar o monitoramento da doença ocular no EUA, André Dhondt e seus colegas criaram um projeto inteiramente dedicado ao rastreamento da doença, que foi incorporado ao FeederWatch. Ao registrar aves doentes em seus comedouros, as pessoas ajudaram a rastrear a enfermidade à medida que ela se espalhava pelo continente.
No Brasil, poucos estudos epidemiológicos utilizaram dados de ciência cidadã. Entre 2015 e 2019, foram apenas dois trabalhos acadêmicos (que seriam as teses, mestrados ou TCCs) e três artigos publicados em revistas científicas que citaram o WikiAves. Esses estudos mencionam as fotos do site ou informações sobre as espécies, mas nenhum foi mais profundo utilizando a expertise dos cientistas cidadãos. Podemos aproveitar a experiência com os House Finches e ficar de olho nas aves que visitam nossos comedouros.
Referências
– Barbosa, KVC, Develey PF, Ribeiro, MC & Jahn, AE (2021). The contribution of citizen science to research on migratory and urban birds in Brazil. Ornithology Research https://doi.org/10.1007/s43388-020-00031-0
– Hawley, DM, Osnas EE, Dobson AP, Hochachka WM, Ley DH & Dhondt AA (2013). Parallel patterns of increased virulence in a recently emerged wildlife pathogen. PLOS Biology DOI: 10.1371/journal. pbio.1001570.
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