Qual o correto: “atropelamento de fauna” ou “colisão veicular com fauna”?

No campo da Ecologia de Estradas, as expressões “atropelamento de fauna” e “colisão veicular com fauna” são muitas vezes utilizados como sinônimos. No entanto, uma análise mais cuidadosa revela que eles carregam nuances distintas de significado, que têm implicações tanto na conservação da biodiversidade quanto na segurança viária. A escolha entre um termo ou outro pode parecer meramente semântica, mas tem desdobramentos importantes na comunicação, na sensibilização do público e na formulação de políticas públicas.

Definições segundo a ABNT e o dicionário

• ABNT NBR 10697:2020

Atropelamento de animal(is): sinistro de trânsito em que animal(is) sofre(m) o impacto de um veículo em movimento.

Colisão: sinistro de trânsito em que um veículo em movimento sofre o impacto de outro veículo também em movimento.

Ou seja, a norma não prevê “colisão” entre veículo e animal.

• Dicionário Michaelis

Atropelamento: colisão que resulta em queda, pisoteamento, esmagamento etc., em pessoas ou animais, com consequentes ferimentos ou até morte; acidente de trânsito por colisão ou choque com veículos.

Colisão: embate recíproco de dois ou mais corpos; choque; abalroamento de veículos; batida; trombada.

Qual o correto?

Na prática, no contexto de Ecologia de Estradas, ambas as expressões se referem ao mesmo tipo de evento: o choque entre um veículo e um animal na via. As duas são aceitas e compreendidas na prática técnica e científica, mas sua utilização depende do contexto e da ênfase na comunicação.

Em termos estritamente normativos, a ABNT reserva “colisão” para choques somente entre veículos, enquanto “atropelamento” se refere ao impacto de um veículo contra um animal ou pessoa. No entanto, na Ecologia de Estradas e em campanhas de comunicação, o termo “colisão veicular com fauna” vem ganhando espaço por ressaltar que o impacto afeta ambos os lados do evento — tanto animais quanto seres humanos.

Segundo a pesquisa de doutorado da bióloga especialista em coexistência humano-fauna, Mariana Catapani, as mensagens de uma campanha devem ser cuidadosamente elaboradas, especialmente por uma questão ética de reconhecer o impacto das colisões para todos os envolvidos. Campanhas promovendo apenas a importância da redução de atropelamentos têm pouca probabilidade de garantir ampla adesão. Em contrapartida, com o uso do termo colisões veiculares, o engajamento pode ser maior pois inclui os impactos negativos tanto para a fauna quanto para os motoristas e os passageiros, podendo ocorrer custos físicos, psicológicos e econômicos como resultado de um incidente, e até mesmo a morte de pessoas. Por isso, abordagens participativas em campanhas, concentradas nas dimensões humanas, podem ter maior potencial para influenciar o comportamento do motorista.

Implicações para a conservação da biodiversidade e a segurança viária

A utilização de cada uma das expressões pode ter implicações diferentes, dependendo do contexto:

• Conservação da biodiversidade

A expressão “atropelamento de fauna” pode ser mais eficaz em contextos em que o foco é a proteção animal, enfatizando o impacto negativo dos veículos sobre a vida selvagem.

Enfatiza a vítima animal e é mais frequente em discursos voltados à preservação da vida silvestre.

Ajuda a sensibilizar o público para os impactos das rodovias sobre a fauna e a urgência de medidas de mitigação, como passagens de fauna e cercas.

Portanto, em campanhas voltadas aos protetores de animais ou comunidades ambientalistas, “atropelamento de fauna” pode ter maior apelo emocional.

• Segurança Viária

A expressão “colisão veicular com fauna” pode ser mais apropriada quando se busca atenção para o cunho social e de segurança viária do evento, reconhecendo os riscos tanto para os animais quanto para os ocupantes dos veículos, em especial quando se trata de animais de médio e grande porte.

Amplia o entendimento do problema ao reconhecer também os prejuízos humanos, sociais e econômicos, criando espaço para maior engajamento com setores como transporte, infraestrutura e segurança pública.

Facilita a aproximação com órgãos de trânsito, seguradoras e condutores, pois reconhece que o evento é um sinistro de trânsito, com riscos para os ocupantes dos veículos.

Pode ampliar o apoio político e investimentos em infraestrutura segura e ambientalmente responsável, pois apresenta o problema como algo que afeta a todos, e não apenas aos animais.

A mudança de paradigma de “acidente” para “sinistro”

A substituição do termo “acidente” por “sinistro” no Código de Trânsito Brasileiro ( por meio da Lei nº 14.599/2023) é uma consequência da norma ABNT NBR 10697:2020, que mostra uma mudança importante na forma de se compreender os eventos de trânsito. A alteração busca conscientizar sobre a responsabilidade no trânsito, ao invés de tratar esses eventos apenas como incidentes fortuitos ou casuais. Isso abre espaço para encará-los como eventos evitáveis, gerando maior responsabilidade coletiva e incentivo à adoção de medidas preventivas.

A lição que fica: mais que palavras, estratégia!

A principal lição é que, apesar das nuances entre termos e expressões, o mais importante é a redução desses eventos (atropelamentos/colisões), que têm um impacto significativo tanto na biodiversidade quanto na segurança viária.

A escolha entre “atropelamento” e “colisão” deve ser estratégica, considerando o público-alvo e os objetivos da comunicação, mas sem perder de vista a necessidade de ações efetivas para mitigar esses incidentes.

No fim das contas, a terminologia não deve ser um fim em si, mas uma ferramenta estratégica para promover ações concretas que salvem vidas — humanas e não humanas.

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