Prorrogação da proibição da pesca da piracatinga termina em 1º de julho. E agora?

Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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No próximo 1º de julho, encerra-se a segunda renovação da moratória da pesca piracatinga (Calophysus macropterus). Esse assunto já foi divulgado aqui no Fauna News ([1], [2], [3], [4] e [5]), foi amplamente divulgado na imprensa e pauta em reuniões de especialistas  nacionais e internacionais e de órgãos governamentais e não governamentais [6]. Porém, novamente, chegamos ao final de um período de proibição sem que tenham sido apresentadas soluções para os fatos que levaram ao estabelecimento da moratória em 2014.

Para quem não sabe ou não se lembra, por volta do final da década de 1990 teve início uma caça direcionada aos botos da Amazônia e de jacarés nos rios amazônicos, para servirem de isca na pesca do bagre necrófago conhecido como urubu-d’água ou piracatinga (no tupi pira=peixe e catinga=fedido, “peixe-fedido”) entre outros nomes. Esse peixe não é consumido pelos amazônidas nem é encontrado nas feiras e mercados das cidades no interior, mas passou a ser vendido já processado pelos frigoríficos, e com nomes fantasia, ludibriando o consumidor.

Inicialmente, toda a produção de piracatinga era direcionada para a Colômbia, em substituição a outro bagre conhecido como capaz (Pimelodus grosskopfii), muito apreciado naquele país e que foi sobrepescado. A matança do boto-vermelho para uso como isca levou a uma drástica redução populacional da espécie.

Para combater essa situação, a Instrução Normativa Interministerial n^o. 6, de 17 de julho de 2014, foi assinada pelos ministros do Meio Ambiente (MMA) e de Pesca e Aquicultura (MPA), proibindo a pesca, retenção a bordo, transbordo, desembarque, armazenamento, transporte, beneficiamento e a comercialização da piracatinga em águas jurisdicionais brasileiras e em todo o território brasileiro pelo prazo de cinco anos, com início em 1^o de janeiro de 2015.

A mesma Normativa, estabelece no artigo 1º, parágrafo 2º, que o MPA e o MMA ficariam responsáveis por realizar estudos e avaliações com o objetivo de identificar técnicas e métodos ou alternativas produtivas ambientais, econômicas e socialmente viáveis e sustentáveis para o exercício e controle da atividade pesqueira da piracatinga.

Além disso, no mesmo artigo dessa IN,  mas no parágrafo 3º, ficou estabelecido que o MMA avaliaria os efeitos da moratória para a recuperação das espécies de botos (Inia geoffrensis e Sotalia fluviatilis) e de jacarés.

Ainda em 2014, foi criado pelo MMA (Decreto n° 318/2014) um Grupo de Trabalho (GT) para definir os procedimentos e monitorar a pesca e a comercialização da piracatinga durante o período de moratória, de modo a se estabelecer maior efetividade, controle e fiscalização dos diversos elos que compõem a cadeia produtiva dessa atividade, e avaliar o real status das populações de botos e de jacarés na região.

Os objetivos específicos do plano de monitoramento são:

– avaliar o status das populações de Inia  geoffrensis (boto-vermelho) e Sotalia fluviatilis (boto tucuxi);
– estudar a distribuição espacial e abundância desses golfinhos;
– definir áreas geográficas estratégicas e representativas para o estudo das populações de botos;
– avaliar a necessidade da elaboração e implantação de ações de manejo, proteção e recuperação populacional; e
– contribuir, pela divulgação dos dados obtidos, para o conhecimento dos efeitos da moratória na região.

Entre os indicadores e as informações que o plano de monitoramento pretendia alcançar estão:

• registro das atividades de campo;
• número de animais registrados por espécie por campanha;
• registro da variação dos tamanhos populacionais;
• estimativa de densidade;
• registro dos hábitats utilizados pelos botos;
• registro da ocorrência do abate de botos para o uso como iscas;
• demais variáveis ambientais pertinentes auxiliares para análises (variáveis hidrológicas, parâmetros físico-químicos, cobertura vegetal etc.).

Devido à falta de recursos e ao não patrocínio das ações pelos órgãos ambientais e de fomento, não houve continuidade das ações propostas no plano de monitoramento do MMA.

Expedições pelos rios Solimões, Amazonas e Purus
Foram realizadas algumas expedições simultâneas em diferentes trechos dos rios Solimões/Amazonas e Purus para estimativas de densidade populacional de botos. Esses levantamentos foram feitos com recursos do Programa ARPA e os resultados e recomendações publicados na Nota Técnica nº 1/2017/CEPAM/DIBIO/ICMBio, de 06 de maio de 2017.

Essas expedições serviram como linha de base para futuros monitoramentos, já que por terem ocorrido em períodos tão curtos não produziram informação viável para identificar qualquer efeito da moratória ou de tendência populacional de botos ou jacarés. Assim, concluiu-se que “para entender o impacto da atividade da pesca da piracatinga e garantir a recuperação das populações de botos usadas como isca, outros índices ou métricas devem ser explorados e um esquema de monitoramento a longo prazo, de perspectiva governamental, deve ser adotado” (Nota Técnica nº 1/2017/CEPAM/DIBIO/ICMBio, de 06 de maio de 2017).

Por sua vez, o Conselho Estadual de Pesca e Aquicultura (Conepa) da Secretaria Estadual de Produção Rural (Sepror) do Amazonas criou, no final de 2019, um grupo técnico de trabalho para discutir o final da moratória e as novas propostas para o retorno (ou não) da pesca da piracatinga. Foram realizadas duas reuniões, em Manaus, no final de 2019 e duas outras estavam previstas para o início de 2020, mas adiadas devido à pandemia da Covid-19. O Grupo Temático da Piracatinga (GT) propunha a criação de um sistema de governança multi-institucional da pesca da piracatinga para promover a pesca responsável dessa espécie, sendo considerado uma grande iniciativa.

Com o final da pandemia e a retomada dos trabalhos pelo GT, tanto no formato presencial quanto remoto, foi elaborado um Plano de Ação (PA) com a participação de diversos especialistas, órgãos ambientais e de fiscalização, ONGs, pesquisadores, donos de frigoríficos e entidades envolvidas na pesca, para guiar as ações necessárias para o cumprimento das condicionantes da moratória de forma a permitir o retorno da pesca da piracatinga. Novamente, não houve financiamento nem apoio para as atividades necessárias que respondessem às condicionantes da moratória nem às ações propostas no referido PA.

Assim, em junho de 2020, depois de cinco anos de vigência da moratória, o secretário de Aquicultura e Pesca do Ministério Agricultura, Pecuária e Abastecimento, resolve estabelecer novo prazo de mais um ano de moratória da pesca e comercialização da piracatinga (Instrução Normativa nº 17, de 10 de junho de 2020), com as seguintes resoluções:

Artigo 1º (…):
– § 1º Fica proibido, durante o prazo estabelecido no caput, a pesca, retenção a bordo, transbordo, desembarque, armazenamento, transporte, beneficiamento e a comercialização da piracatinga em águas jurisdicionais brasileiras, e em todo território nacional.
– § 2º Durante esse período, a Secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento poderá buscar o apoio de outras instituições governamentais para:

I – avaliar os efeitos da moratória para a recuperação das espécies de botos (Inia geoffrensis e Sotalia fluviatilis) e jacarés (Caiman crocodilus e Melanosuchus niger);
II – identificar técnicas e métodos ou alternativas produtivas ambiental, econômico e socialmente viáveis e sustentáveis para o exercício e controle da atividade pesqueira da piracatinga (Calophysus macropterus);

Art. 2º A vedação de que trata esta Instrução Normativa não se aplica para casos de captura com fins de pesquisa científica, desde que devidamente autorizada pelo órgão ambiental competente.

Art. 3º A vedação de que trata esta Instrução Normativa não se aplica para a pesca de subsistência.

Parágrafo Único. Fica definida como pesca de subsistência, a captura e o transporte de até 5kg da espécie, para fins únicos de alimentação do pescador e sua família.

Art. 4º Os infratores das disposições contidas nesta Instrução Normativa ficam sujeitos às sanções previstas na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 e no Decreto nº 6.514, de 22 de julho de 2008, e em legislação complementar, sem prejuízo de outras cominações legais.

Com a prorrogação da moratória até junho de 2022, o MAPA/SEPA (Secretaria Executiva de Pesca e Aquicultura) assumiu as atividades do GT no intuito de resolver, nesse período, as questões pendentes. Foi feita a revisão do plano de ação e uma nova versão, com quatro eixos e diversas ações, foi produzida. Novamente, no entanto, no final desse período, tínhamos um novo PA, mas sem recursos, seja do MMA seja do MAPA, para desenvolver as ações e buscar soluções para as condicionantes propostas. Mais uma vez, o MAPA se viu forçado a  manter a moratória. Nova Portaria foi publicada no DOU de 23 de julho de 2022 (Portaria SAP/MAPA n^o 1.082)  prorrogando até 1^o de julho de 2023 a moratória da pesca da piracatinga, com o mesmo texto das moratórias anteriores.

Finalmente, em 2022 o MAPA conseguiu um recurso para apoiar parcialmente os estudos sobre a pesca e a biologia da piracatinga e as pesquisas socioeconômicas dos pescadores que se dedicam a captura desse bagre.

Durante todo o primeiro semestre de 2023 e até o momento, não houve nenhuma reunião do GT e não foram divulgados ou apresentados os resultados das pesquisas iniciadas que evidenciem respostas às condicionantes estabelecidas pela moratória nem pelo plano de ação.

Esta semana, o MAPA enviou um convite para a 7^a Reunião do GT da Piracatinga (a primeira de 2023) a ser realizada no dia 30 de junho, às vésperas do encerramento da prorrogação da moratória.

Sabemos que durante todo o período de moratória, a piracatinga nunca deixou de ser pescada. Certamente houve redução da quantidade, mas inúmeras reportagens mostraram que o Ibama e outros órgãos fiscalizadores no Amazonas apreenderam toneladas desse pescado durante a moratória.

O que mais surpreende é o comportamento de vários frigoríficos que, além de financiarem a pesca, continuaram a comprar um peixe pescado ilegalmente. E o que é mais grave: comercializaram com nomes falsos, nomes fantasias ou misturado em pacotes de filés de peixes conhecidos, caracterizando um crime contra o consumidor.

Mesmo com uma fiscalização insuficiente e não totalmente eficaz, aparentemente houve redução na captura de botos para uso como isca. Entretanto, deve ter aumentado a captura de jacarés ou de outra espécie de animal.

O MAPA, as associações de pescadores e aqueles que têm interesse em pescar e comercializar a piracatinga deveriam comprovar as medidas tomadas para garantir que nenhuma espécie da fauna silvestre brasileira, principalmente o boto-vermelho e o tucuxi, seja utilizada como isca.

A moratória deve ser mantida até que o ordenamento da pesca da piracatinga e o cumprimento dos objetivos da moratória estabelecida em 2014, e renovada consecutivamente, de identificar as técnicas, os métodos ou as alternativas produtivas ambientais, econômicas e socialmente viáveis e sustentáveis para o exercício e controle da atividade pesqueira desse bagre, além da avaliação dos efeitos da moratória para a recuperação das espécies de botos e jacarés.

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