Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Tem uma situação que todo mundo que é da área da Biologia já deve ter vivenciado. Quando um amigo, familiar ou conhecido sabe que você é biólogo formado ou em formação, vem logo com perguntas do tipo “Quantos animais têm no mundo?”, “Qual é o tempo de gestação da elefanta?”, “Por que a aranha não fica presa na própria teia?”, coisas assim. Demanda por identificação, então, é algo recorrente: é um tal de “Passei ontem na rua e vi uma árvore alta, com tronco marrom e umas folhinhas verdes. Pode me dizer qual é?” ou “Entrou ontem um inseto pela minha janela, era pretinho e tinha asas. Ele é perigoso?”. Ou então o verdadeiro terror para um biólogo em tempos de redes sociais: “Eu sei que a foto está ruim, mas essa cobra é perigosa?” – Se o perguntador começou assumindo que a foto está ruim, você já sabe de cara que identificar a criatura vai ser tarefa mais difícil que os sete trabalhos de Hércules.
Aí você vai e explica que determinar a espécie de uma planta pode ser difícil até mesmo para os botânicos, que precisam da flor para a identificação. Ou que existem tantos insetos no mundo que para identificar uns poucos deles só mesmo sendo especialista naquele pequeno subgrupo em questão e, ainda assim, o identificador pode ter que extrair a genitália do bicho, tratar adequadamente e examinar no microscópio – mesmo assim, isso, em mais de 99% das vezes, só funciona se o exemplar for macho. E os curiosos de plantão vão comentar nas festas de família (ou no temível WhatsApp) coisas do tipo: “Ah, fulano? Ele não é tão bom não, fiz umas perguntas e ele nem soube responder. Para ser biólogo assim, até eu!”. Dureza…
Assim como eu, minha mulher é bióloga e, com toda certeza, passou por inúmeras situações dessas. Uma delas vai servir para nossa conversa. Ainda nos bons tempos de solteirice, ela foi solicitada a resgatar um “bicho estranho” que apareceu em uma roseira. (Sim, convocação para “resgates” é um outro osso do ofício de ser biólogo – no meu caso específico, os resgates extremos foram de lacraia à cobra-coral.) E foi Luci (Boa Nova Coelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) atrás do tal bicho estranho. Estava em uma roseira, no canteiro de uma casa no subúrbio da selva de pedra chamada Rio de Janeiro. Depois de procurar um pouco na roseira, incentivada pelos gritos de “Ele tá aí” e “Tá na roseira”, Luci encontrou… Um inseto! Um bicho-pau, fêmea adulta, de grande porte e bonita demais. E agora, o que fazer? Sacrificar para anexar à coleção didática? Tentar soltar em alguma área natural, mesmo sem saber se haveria alimento adequado disponível? Tentar criar?
Talvez motivada por também ter em casa uma roseira, Luci seguiu a terceira opção. É lá se foi o bicho-pau para o bairro carioca de Cascadura, onde se alimentou à vontade das folhas da roseira da então minha futura sogra. A bicho-pau, batizada de Olívia (alusão óbvia à Olívia Palito, do desenho animado do Marinheiro Popeye), viveu livremente o resto de seus dias ali, estando hoje incorporada à Coleção Entomológica Professor José Alfredo Pinheiro Dutra, na UFRJ.
Bicho-pau é um animal muito interessante sob vários aspectos, inclusive para se conversar sobre ele. Do ponto de vista da caracterização biológica, os bichos-pau estão classificados na ordem Phasmatodea, também denominada Phasmida, Phasmatoptera ou Phasmodea [1] [2]. São insetos que mimetizam pedaços de madeira ou gravetos. O grupo é composto por quase três mil espécies, distribuídas em cerca de 500 gêneros e 13 famílias. Seu desenvolvimento é do tipo hemimetábolo, ou seja, do ovo nasce um imaturo denominado ninfa, que vai crescendo e sofrendo mudas (ecdises) periódicas do esqueleto externo até resultar no adulto. A maioria dos bichos-pau se reproduz sexuadamente [3].
Sobre insetos de uma maneira geral, já conversamos aqui, em várias ocasiões, o quão importante é se falar sobre eles, mostrar seus feitos, os papeis sistêmicos desempenhados, suas missões biológicas. Isso é crucial em se tratando de um grupo animal tão estereotipado e, claramente, com representação social bastante negativa. Falamos sobre isso, por exemplo, na nossa última conversa [4], dedicada às crianças. Pois bem, nem todos os insetos têm má fama – sim, são poucos, mas há insetos vistos com bons olhos. É o caso, por exemplo, das joaninhas (ordem Coleoptera) e borboletas (ordem Lepidoptera), vocês hão de concordar, e isso já foi tangencialmente conversado por aqui [5]. Mas a real é que a maioria dos insetos não está exatamente na lista dos animais que nos são queridos. Excluindo joaninhas e borboletas, se eu for pedir por aí para as pessoas apontarem um inseto do qual gostam, provavelmente vão ter que pensar muito para responder. Talvez abelhas (ordem Hymenoptera), por causa do mel e outros produtos, mesmo assim todo mundo tem medo da ferroada. Mais algum? Difícil. Mas… E o bicho-pau?
Cheguei aonde eu queria chegar. O bicho-pau é um inseto simpático demais, não causa problemas, não transmite doenças, não mete medo. Não há quem desgoste do bicho-pau. Mas então, por que basicamente ninguém lembra do bicho-pau como inseto querido? Talvez porque não ser percebido seja exatamente o ofício do bicho-pau, sua estratégia de sobrevivência. Mesmo com alguns vivendo nas áreas urbanas, até no centro de grandes metrópoles. O segredo do bicho-pau é não ser visto. Como deve ter feito, por muito tempo, a Olívia.
Mesmo respeitando a estratégia de vida do bicho-pau, que garante inegável sucesso à ordem, podemos sim trazer um pouco de visibilidade a esses insetos tão interessantes e, o que é bem importante, sem rejeição popular. Quem sabe não seriam os bichos-pau excelentes modelos para se popularizar os insetos como um todo?
Um trabalho excepcional de divulgação científica dos insetos da ordem Phasmatodea é feito pelo Projeto Phasma, o primeiro grupo no Brasil a estudar especificamente os bichos-pau e suas peculiaridades. Além da pesquisa científica, o projeto objetiva enriquecer as coleções científicas brasileiras e divulgar essas informações em âmbito científico e para o público em geral [6]. Já faço o convite para que vocês, caros leitores, sigam o Projeto Phasma nas redes sociais [7].
Tive a felicidade de conversar com Victor Morais Ghirotto, biólogo formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro e, atualmente, cursando o mestrado no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP), um dos fundadores do Projeto Phasma. Os outros fundadores foram Phillip Watzke Engelking, biólogo formado pela Unesp de Assis, e Pedro Alvaro Barbosa Aguiar Neves, biólogo também formado na Unesp de Rio Claro e, atualmente, cursando uma segunda graduação, de Medicina. Posteriormente se incorporaram ao projeto Pedro Ivo Chiquetto Machado, biólogo, mestre e doutor pela USP, o primeiro a defender uma tese de doutorado com bichos-pau no Brasil, no MZUSP, e Edgar Blois Crispino, biólogo e mestre formado pela USP, tendo defendido dissertação com bichos-pau, também no MZUSP.
Segundo Ghirotto, desde 2015 os fundadores do Projeto Phasma pensavam em estudar algum grupo de insetos que fosse carente em especialistas e linhas de pesquisa no país. Eles já eram amigos e tinham esse interesse em comum, o que os levou a estudar e pesquisar juntos, vibrando com cada novo achado. Também tiveram a influência do Projeto Mantis (que, certamente, também será tema neste nosso espaço), o que os levou a concretizar formalmente um grupo de pesquisa, com vínculos institucionais.
O interesse nos bichos-pau basicamente nasceu devido às muitas características interessantes presentes na ordem. Para Ghirotto e seus amigos, esse interesse tem a ver com o fato de os bichos-pau serem herbívoros, mestres em camuflagem e, quando não se camuflam, têm espécies coloridas, espinhosas ou que voam muito bem. Eles podem ser enormes, incluindo os recordes de comprimento para insetos. São muito carismáticos, chamativos, na maioria das vezes dóceis e fáceis de se manusear. Também possuem uma cabeça destacada e com boca para frente, sendo fácil reconhecer a ‘’cara’’ do inseto. Possuem ainda uma enorme variedade, com espécies fininhas, outras robustas, algumas coloridas, outras com asa, sem asa, com asas pequenas, e também uma variedade grande de comportamentos.
O dimorfismo sexual (diferença externa entre os sexos) é muito acentuado, com machos geralmente menores, mais finos, mais coloridos, e com ornamentações diferentes. Os ovos estão entre os mais variados de todos os animais, sendo muito diferentes entre as linhagens: têm ovo liso, rugoso, peludo, espinhoso, alongado, achatado, redondo, com todo tipo de desenho ou ornamentações. Por último, os amigos cientistas foram atraídos justamente pela falta de conhecimento sobre esses insetos. Isso é algo que os motiva, eles consideram ser realizador encontrar coisas novas relativas ao mundo dos bichos-pau. Sempre se topa com algum achado interessante, o que faz com que o pessoal do Projeto Phasma fique, nas palavras de Ghirotto, “parecendo criança que acabou de ganhar o melhor presente de Natal possível”.
Sediado em São Paulo, o Projeto Phasma atua principalmente no Sudeste brasileiro. Porém, como tudo é novo e o projeto é a nível nacional, eventualmente são realizadas coletadas por todo o país, conforme a disponibilidade de tempo e recursos. A ideia é trabalhar com bichos-pau como um todo, sem limitações por fronteiras.
Como era de se esperar, cada pesquisador do projeto tem a sua espécie favorita. Para Phillip é o bicho-pau-de-canalículo (Xerosoma canaliculatum – família Pseudophasmatidae), espécie que foi foco de sua iniciação científica e trabalho de conclusão de curso (TCC). Para Victor é o Cladomorphus phyllinus (família Phasmatidae), um bicho-pau gigante com o qual teve contato ainda na infância e adolescência. Para Alvaro é o Prisopus sacratus (família Pridopodidae), espécie muito distinta e pouco comum, considerada a ”menina dos olhos de ouro” das expedições do Projeto Phasma. Para Ivo é o Paraphasma sooretama (família Pseudophasmatidae), espécie descrita por ele, do grupo-alvo de seu doutorado e que foi encontrada na sua primeira expedição de coleta de bichos-pau, na Reserva Biológica de Sooretama (ES). Para Edgar é o Ceroys (Miroceroys) saevissimus (família Heteronemiidae), bicho-pau muito ornamentado, cheio de lobos e espinhos – foi o achado que o trouxe até o projeto.
Dentre os registros mais marcantes, resultantes das atividades do projeto, os pesquisadores se dizem empolgados em achar bichos-pau da subfamília Prisopodinae (família Prisopodidae), que geralmente se camuflam como cascas de galhos e troncos, e as enormes fêmeas do gênero Otocrania (família Diapheromeridae), que estão entre os maiores insetos da Região Neotropical. Além, é claro, das espécies novas.
Como planos futuros, a curto e médio prazo os pesquisadores pretendem seguir conciliando o Projeto Phasma e a pesquisa individual de cada membro. A intenção é, um dia, conseguirem algum financiamento. A incorporação de, pelo menos, algum dos integrantes à uma universidade pública também ajudaria muito, pois representaria a chance de estabelecimento de uma linha de pesquisa oficial. O que resultaria na orientação de alunos, proposição de projetos vinculados à universidade, solicitação de bolsas, etc. Por enquanto, eles seguem com muito trabalho para fazer com as espécies novas já encontradas, pesquisas com ecologia, genética, morfologia e a mais do que necessária revisão da caótica taxonomia do grupo.
Quero finalizar deixando um abraço solidário aos familiares e amigos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, desaparecidos na Amazônia. Que a luta que esses dois sempre travaram em suas respectivas carreiras profissionais nos inspire a continuar lutando. E que jamais se calem as vozes em defesa do meio ambiente, da biodiversidade, dos povos originários e das minorias sociais. O texto de hoje é dedicado a Bruno e Dom.
[1] https://www.ephemeroptera-galactica.com/pubs/pub_c/pubcostaa1938p1.pdf
[2] https://lemondedesphasmes.free.fr/IMG/pdf/Sitientibus.pdf
[3] Zompro, O. 2012. Phasmatodea. In: Rafael, J.A. et al. (ed.). Insetos do Brasil: diversidade e taxonomia. Ribeirão Preto: Holos, p. 289-295.
[4] https://faunanews.com.br/2022/05/18/insetos-para-criancas
[5] https://faunanews.com.br/2021/10/20/a-senhora-dos-insetos
[6] https://www.icmbio.gov.br/parnaitatiaia/images/stories/o-que-fazemos/2019/Resumo_Projeto_Phasma.pdf
[7] https://www.instagram.com/projetophasma/
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