Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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As mudanças climáticas são uma realidade cada dia mais presente em nossos cotidianos e ameaçam não apenas a sobrevivência da biodiversidade e dos ecossistemas, como também a manutenção, a subsistência e a qualidade da vida humana na Terra.
As mudanças climáticas são o resultado da queima de combustíveis fósseis (como o petróleo, o gás e o carvão) por atividades antrópicas, como a geração de energia e o desmatamento. Essa queima libera gases de efeito estufa – como o dióxido de carbono (CO2) –, que retêm o calor do Sol na atmosfera, aumentando a temperatura média do planeta. Ainda, o metano é outro gás que contribui de forma acelerada para o aquecimento global (e é vinculado à produção agropecuária).
No artigo “Do valor intrínseco ao valor monetário: Por que conservar as baleias e os golfinhos?”, apresentei dados de um texto do Fundo Monetário Internacional (FMI) que indicou a recuperação das populações de grandes cetáceos – incluindo as baleias-verdadeiras e o cachalote – como uma estratégia de mitigação fundamental para limitar os gases do efeito estufa e o aquecimento global.
Isso se dá porque os grandes cetáceos desempenham um papel fundamental no sequestro de carbono da atmosfera. Assim como todos os seres vivos, eles possuem carbono na sua composição e podem atuar como reservatórios desse elemento. Entretanto, devido aos seus grandes tamanhos e a sua longevidade, esses grandes mamíferos podem armazenar ainda mais carbono.
Segundo o artigo – e em números –, cada grande cetáceo pode absorver, em média, 33 toneladas de CO2 durante sua vida. Esse CO2 é acumulado e retido em seus corpos. Após a sua morte, essa substância se mantém sequestrado da atmosfera por longos períodos, permanecendo junto às carcaças que vão parar no fundo do mar. Lá no fundo, esse carbono vai sustentar a biodiversidade e os ecossistemas de profundidade, além de ser incorporado nos sedimentos marinhos.
Esse carbono pode ser retido no fundo do mar por séculos ou milênios devido às condições de baixo oxigênio no solo. Os ecossistemas marinhos e costeiros atuam naturalmente como sumidouros de carbono, o que pode ser conhecido também como carbono azul.
Um outro e importante exemplo de carbono azul – dentre outros como bosques de macroalgas e os marismas – são os manguezais. Os manguezais atuam também como amortecedores de outros efeitos cada vez mais frequentes e atribuídos às mudanças climáticas, como o aumento do nível do mar e os eventos extremos ( inundações e tormentas, por exemplo).
Quando os manguezais e outros ecossistemas de carbono azul são destruídos, enormes quantidades de CO2 são liberados na atmosfera – tal como ocorre com o desmatamento das florestas. Como comparação, um dado recente indica que se o Brasil zerar o desmatamento, poderia reduzir 78% das emissões de gases de efeito estufa do país. Da mesma forma, quando toneladas de peixes grandes são extraídas dos oceanos, enormes quantidades de CO2 deixam de ser sequestradas e passam a contribuir para as emissões atmosféricas adicionais de CO2.
Além disso, os grandes cetáceos têm outras formas de ajudar os oceanos a sequestrar carbono. Através dos seus excrementos ricos em nutrientes, eles contribuem para o crescimento do fitoplâncton, que são microrganismos fotossintetizantes que constituem a base da cadeia alimentar marinha. Ou seja: a defecação, a ureia e até mesmo a placenta dos grandes cetáceos, quando liberados, adicionam ao ambiente nutrientes essenciais à vida marinha e que são naturalmente escassos (como o nitrogênio, o ferro e o fósforo). Através desse processo, por exemplo, estima-se que 12 mil cachalotes ajudem a sequestrar cerca de 200 mil toneladas de carbono por ano no oceano Antártico.
O fitoplâncton, através da fotossíntese, além de sequestrar o CO2 da atmosfera, é uma das fontes mais importantes de oxigênio na Terra. Ele é responsável por nada menos que 50% de todo oxigênio que existe no planeta e por sequestrar cerca de 37 bilhões de toneladas métricas de CO2. Em comparação, isso representa 40% de todo o CO2 produzido ou a quantidade de CO2 que poderia ser capturada por quatro florestas amazônicas.
Os movimentos dos grandes cetáceos no ambiente marinho são, portanto, imprescindíveis para a distribuição e o crescimento do fitoplâncton nos oceanos. Seja através dos seus movimentos na coluna d´água (como os cachalotes que se alimentam no fundo do mar e sobem até a superfície para respirar e liberar seus excrementos), ou através das migrações entre as diferentes latitudes (como a maioria das baleias-verdadeiras, que se alimenta em áreas próximas aos polos e ricas em nutrientes, e se reproduzem em áreas mais próximas dos trópicos em áreas mais pobres em nutrientes).
Portanto, investir em estratégias para mitigação dos impactos antrópicos sobre os grandes cetáceos é essencial para permitir a recuperação de suas populações e, consequentemente, para poder aumentar de forma significativa a captura de carbono da atmosfera.
É preciso recordar, também, que as populações dos grandes cetáceos sofreram reduções drásticas durante a caça comercial e que, até os dias de hoje, não puderam recuperar os níveis populacionais anteriores a esse período. Isso é resultado do aumento de outros riscos a sobrevivência dessas espécies, como as colisões com embarcações, a poluição sonora, o emaranhamento em redes de pesca e a poluição residual (estressores não-climáticos) – que, diga-se de passagem, estão diretamente vinculados ao modelo hegemônico de produção e de consumo que nos conduz ao aquecimento global.
Em águas brasileiras, por exemplo, a única baleia-verdadeira que parece estar se recuperando é a baleia-jubarte, que aumentou consideravelmente o número de indivíduos nos últimos anos (com a estimativa de 500-800 indivíduos na década de 1980 para 20 mil indivíduos atualmente). Esse aumento levou a retirada da espécie, inclusive, da Lista de Espécies Ameaçadas em 2014, onde passou de ser classificada como “quase-ameaçada” (equivalente a categoria Near Threatened da IUCN).
Contudo, na temporada reprodutiva de 2021 houve o recorde histórico de encalhes da espécie: quase 200 indivíduos ao longo da costa do país, representando uma mortalidade de 1% dessa população. A desnutrição é um dos principais motivos para o aumento de mortes em águas brasileiras (além de outros motivos como, por exemplo, interações com a pesca). Essa temporada também registrou a segunda taxa de natalidade mais baixa da espécie, associada, também, à falta de disponibilidade de alimento.
Esses dados – obtidos e divulgados pelo Projeto Baleia Jubarte – indicam que houve uma diminuição da oferta de krill na área de alimentação que afetou principalmente os indivíduos jovens. Esses jovens – que ainda não estão em idade reprodutiva – parecem ter permanecido em águas da região Sul e Sudeste para buscar sardinhas e tainhas (ao invés de se concentrar no Banco de Abrolhos). A diminuição na oferta do krill (crustáceo) em águas antárticas parece estar relacionada tanto ao aumento da população (o que demanda uma maior oferta de recursos), quanto ao aquecimento global (que diminui a possibilidade de oferta).
Outro exemplo alarmante ocorreu em 2015, na Patagônia chilena. Um total de 343 indivíduos de baleias-sei – espécie globalmente ameaçada de extinção – foram encontrados mortos na costa do país. O ocorrido foi associado a uma proliferação de algas tóxicas atribuída ao aumento da temperatura do mar (devido ao efeito do El Niño potencializado pelas mudanças climáticas). Esse evento, que foi o maior encalhe em massa já registrado, pode ser entendido como um alerta envolvendo as primeiras vítimas da megafauna oceânica em razão do aquecimento global.
As mudanças climáticas estão tornando os oceanos cada vez mais ácidos e mais quentes, levando ao branqueamento dos corais e ao aumento dos níveis do mar, enquanto se observa a redução do gelo marinho nos polos.Reduções na produtividade dos oceanos tropicais e temperados são projetadas (dado o aquecimento e a estratificação que bloqueia os nutrientes necessários para o crescimento do fitoplâncton).
Os impactos das mudanças climáticas sobre os mamíferos marinhos serão, talvez, principalmente indiretos e relacionados às alterações do habitat físico e das dinâmicas presa-predador. Enquanto predadores de topo de cadeia, podemos entendê-los como bioindicadores, tanto da qualidade e da variabilidade, como da degradação ambiental.
Os efeitos das mudanças climáticas em cada espécie vão variar de acordo com sua escala ecológica, considerando características da sua escala de vida. Com o passar do tempo, algumas espécies de ampla distribuição poderão se adaptar às perturbações introduzidas pelas mudanças climáticas, enquanto espécies com habitat mais regionais poderão ter mais dificuldades de se adaptar em ambientes degradados.
Recuperar as populações das espécies de grandes cetáceos – além de essencial para combater as mudanças climáticas – é algo que leva tempo, devido à reprodução tardia e ao grande tamanho desses animais. Além disso, a própria implementação, monitoramento e avaliação de medidas de mitigação também constituem um processo demorado. É preciso, portanto, que atuemos desde já – sem esperar até 2030 ou 2050 – para combater os impactos antrópicos que ameaçam a sobrevivência desses animais, antes que eles passem a sofrer em ampla escala – também – com os impactos decorrentes das pressões climáticas.
O aquecimento global é um dos maiores desafios do nosso tempo. A conservação da natureza e a manutenção da biodiversidade através da defesa dos territórios e dos modos de vida tradicionais são, em contrapartida, nossos maiores aliados para enfrentá-lo. Mitigar os impactos antrópicos existentes sobre os grandes cetáceos – assim como sobre toda a biodiversidade – é fundamental, mas repensar os modelos que nos trouxeram até aqui também é essencial para atuar na raiz dos nossos problemas socioambientais.
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