Por Angela Pellin¹ e Simone Tenório²
¹Bióloga, especialista em Biologia da Conservação e doutora em Ciências da Engenharia Ambiental. Há dez anos é pesquisadora e coordenadora de Projetos do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e docente da Escas (Escola de Conservação Ambiental e Sustentabilidade). Possui experiência no setor governamental e não governamental com projetos relacionados à conservação da natureza, criação e gestão de áreas protegidas públicas e privadas, nos biomas Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal e Amazônia. Mãe da Estelinha e amante da natureza
²Bióloga, pós-graduada em Gestão de Negócios e Tecnologia e mestra em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável. Pesquisadora e coordenadora de projetos do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, atuando nas áreas de Políticas Públicas e Desenvolvimento Econômico Territorial, Conectividade de Paisagens, Valoração dos Serviços Ecossistêmicos e do Capital Natural e estudos relacionadas à biodiversidade com uso de bioacústica. Coordena o Programa Neotropical Brasileiro da Environmental Leadership &Training Initiative (ELTI) da Yale University desenvolvido em parceria com o IPÊ/Escas (Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade)
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Em um dos momentos mais delicados vividos com relação às alterações climáticas e à destruição ambiental, em especial no Brasil, estar presente no maior congresso de proteção à natureza do mundo, o Congresso Mundial da IUCN, é um privilégio e uma responsabilidade. Afinal, representamos a maior potência ambiental do planeta em um evento de impacto global.
A União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) é uma das maiores e mais antigas redes de conservação do mundo. Este ano, o congresso foi em Marselha, na França, de 3 a 11 de setembro. O evento acontece a cada quatro anos e nesta edição, embora sob tantos desafios difíceis, foi marcado por um clima de esperança e muitas novidades.
Mas o que fez este congresso tão especial? Além dos dois anos de espera por sua realização frente à pandemia, foi importante e estimulante ver governos, sociedade civil, povos indígenas, cientistas e setor empresarial discutirem sobre tomada de ações para superar nossos desafios ambientais e de sustentabilidade mais urgentes, incluindo as crises da biodiversidade, do clima e da saúde, com a pandemia de Covid-19. Para nós, que vivenciamos o atual cenário brasileiro e estamos em um luta diária para reestabelecer os marcos legais das questões socioambientais e na insistente busca para evitar e reverter o desmanche de todas as regras, políticas, leis e instituições ligadas à causa, foi um misto de renovação e inspiração. Além disso e da definição de novas metas globais e ações para um futuro sustentável e saudável para as pessoas e a natureza, este congresso é um marco importante antes das principais conferências da ONU sobre o clima, em Glasgow (entre 1º e 12 de novembro), e a biodiversidade, em Kunming (entre 25 de abril e 8 de maio de 2022).
A grandeza e a intensidade do Congresso impressionam. Foram mais de 9.200 participantes presenciais, além dos mais de 25 mil visitantes que foram até a área de exposições públicas promovidas pelo evento. A impossibilidade de participação de muitas pessoas, por restrições relacionadas à vacinação e às medidas sanitárias de cada país, também elevou o nível de participações à distância, com mais de 50 mil visualizações de sessões on-line.
O Congresso foi composto pelo fórum principal, um espaço para troca de conhecimentos para a Ciência, e para a prática e a inovação em conservação e desenvolvimento sustentável. Nele, mais de 600 sessões abordam os aspectos econômicos, sociais, científicos e técnicos de questões que vão desde a vida nos oceanos, de áreas protegidas a negócios sustentáveis, de economia e mudanças climáticas até os direitos humanos. Tradicionalmente, no fórum são realizados os anúncios importantes da IUCN e seus membros, incluindo uma atualização da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da entidade, apresentações sobre o Protected Planet Report, entre outros. Também é possível acompanhar eventos de alto nível como o que reuniu lideranças de governos da União Europeia para apresentar uma estratégia para eliminar a importação de commodities associados ao desmatamento e à degradação das florestas tropicais.
A Assembleia de Membros também é uma marca do Congresso, representando a instância máxima de decisão da IUCN. Durante três dias de Assembleia, mais de 1.400 organizações de governos, da sociedade civil e de povos indígenas ligados à IUCN, de mais de 160 países, votam em questões urgentes de conservação e desenvolvimento sustentável. Neste ano, devido a pandemia, alguns membros, pela impossibilidade de estarem presencialmente, definiram representantes no evento que puderam votar em seu nome. Com essa estratégia, a Assembleia conseguiu contar com mais de 60% dos votos dos membros em suas moções. As decisões tomadas pelas organizações membros deverão influenciar a política de conservação global na próxima década.
Dentre as moções mais controversas, estava a que criava uma comissão de especialistas na IUCN, a Comissão de Mudanças Climáticas, que acabou sendo aprovada. Outras moções também chamaram atenção, como as que recomendam a proteção de 80% Amazônia até 2025 para evitar o ponto de não retorno e a que solicita proteção dos defensores de direitos humanos e de povos indígenas.
Vale destacar que, apesar da importância da realização do evento, o contexto de pandemia prejudicou a participação dos países latino-americanos, que foram sub representados em relação à Europa e aos EUA. Para exemplificar, a América Latina poderia ter a participação de 91 membros com direito a voz e voto na Assembleia, mas participaram apenas 42 presencialmente. O Brasil conta com 18 membros e apenas seis estiveram no evento de forma presencial, incluindo o IPÊ como vice-presidente do Comitê Brasileiro da IUCN e o Imaflora como secretário.
Outro marco importante do Congresso, que não pode deixar de ser citado, foi a eleição da sua nova presidente, a segunda mulher eleita em 73 anos, Razan al Mubarak. Tivemos o prazer de conversar com ela e contar um pouco sobre o Brasil, ressaltando a importância de fortalecer a presença da IUCN em nosso país. Razan demonstrou ser uma pessoa inspiradora e sensível e, durante nosso encontro, demonstrou muito interesse em estar mais próxima do Brasil, citando inclusive que “O Brasil está no coração do mundo e eu vou trabalhar para que ele esteja no coração da IUCN”.
Indiscutivelmente, nosso país megadiverso e com dimensões continentais, reconhecido pela disponibilidade de água, importância frente aos desafios climáticos e suas riquezas naturais, foi mencionado em diversos fóruns e reuniões. Porém, o Brasil não teve destaque apenas por seus atributos, mas também pela condução das nossas políticas socioambientais. A falta de diretrizes adequadas às populações tradicionais e aos povos originários e a má condução de alguns setores do agronegócio foram destaque e estiveram em pauta nas discussões sobre possíveis estratégias de como a comunidade internacional poderá pressionar o país a modificar sua conduta sob pena de sanções ligadas às importações.
Os temas mais abordados e que foram transversais em todas as discussões foram as chamadas Soluções Baseadas na Natureza, a agricultura de baixo carbono, necessidade de trazer os investimentos na natureza pensando no ponto de vista econômico, (uma vez que a maior parte do PIB global são advindos do meio natural e dependem desses recursos) e a importância de serem realizados planos de ação que reúnam diversos setores para a resolução das questões – inclusive, apresentamos o Plano Operacional para a Conservação do Oeste Paulista, com os resultados de diversos trabalhos desenvolvidos durante anos pelo IPÊ para restauração florestal da Mata Atlântica no interior do estado de São Paulo. Ficou evidenciada nas falas a tendência em direção à Economia Regenerativa, pois não existe economia desvinculada dos recursos naturais, e a preocupação com a retomada da economia mundial e com os impactos que poderão causar nos ambientes naturais e na biodiversidade caso os investimentos não sejam direcionados às iniciativas que protegem e restauram a natureza. Um dos apelos importantes da IUCN foi em relação aos investimentos dos governos, para que direcionem 10% do investimento destinado à recuperação global para iniciativas que protejam e restaurem a natureza e os meios de sub existência.
Foram levantadas ainda questões ligadas à ética e à transparência em relação ao trabalho e criação de empregos verdes. Ademais, a conservação não pode ser considerada um gasto e as decisões devem ser embasadas em resultados científicos e não apenas em discursos sem eficácia.
Como não poderia deixar de ser, as questões climáticas também estiveram no centro das discussões e ficou clara a impossibilidade de dar continuidade a uma discussão sobre mudanças climáticas desassociada da crise da biodiversidade. Ambas estão intrinsicamente ligadas. Essa visão foi declarada por Cristine Lagarde, presidente do Banco Central da Europa, quando mencionou que “biodiversidade e clima são dois lados da mesma moeda”.
A mudança de pensamento nessa direção é uma questão moral e o componente ético é fundamental. Não podemos perder o otimismo de pensar que cada passo nesse sentido cria um caminho para uma nova visão de mundo. Vale a pena ler o Manifesto de Marselha, que mostra quais são os degraus que podem nos levar a essas mudanças necessárias. E inadiáveis.
Desejamos que o ambiente de ânimo e esperança e as promessas de engajamento e articulações dos diversos setores que estiveram presentes permaneçam ao longo dos próximos meses. Que possam estar em mudanças concretas relacionadas às políticas de clima e biodiversidade, na recuperação pós-Covid de forma mais segura e sustentável e com uma influência positiva nas resoluções das COPs que virão por aí.
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