Biólogo com mestrado e doutorado em Ecologia Aquática pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atualmente, é professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, onde leciona Ecologia e coordena as atividades de pesquisa do Laboratório de Ecologia Aquática.
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A Biologia Evolutiva é o ramo da Ciência que investiga mecanismos geradores da biodiversidade, ou seja, que busca entender como essa variedade imensa de espécies é formada na natureza. Dentre os processos evolutivos conhecidos, a especiação alopátrica se caracteriza pela separação geográfica de indivíduos de uma mesma espécie. Com o passar das gerações, essas populações separadas em ambientes com características diferentes sofrem pressões evolutivas distintas, que selecionam diferentes atributos para cada uma das populações. Após inúmeras gerações nesse cenário de isolamento, as populações podem sofrer mutações que as tornam incompatíveis do ponto de vista reprodutivo, concretizando o que se conhece na biologia por especiação (formação de uma nova espécie).
Tais processos de geração de novas espécies são amplamente investigados em diversos ambientes mundo afora. Acontece que a maioria desses estudos é baseada em evidências passadas, já que o tempo evolutivo é apresentado em escalas maiores que centenas e milhares de anos. Isso significa que cada mudança de caractere pode demorar milhares de anos para ser selecionada e a probabilidade de detectar uma dessas mudanças acontecendo em tempo real é extremamente baixa.
É nesse contexto evolutivo que o Parque Estadual de Vila Velha (PEVV), localizado no município de Ponta Grossa (PR), desperta a atenção de cientistas. O PEVV apresenta uma configuração geológica rara, com a presença de furnas (grandes buracos no solo), que proporciona a separação geográfica de populações naturais do pequeno lambari-do-rabo-vermelho (Psalidodon fasciatus), que daqui em diante chamaremos apenas de lambari.
Mas antes de falar dos lambaris, precisamos entender alguns aspectos geológicos do local. As furnas são formas raras de arenito, caracterizadas como verdadeiros buracos naturais no solo, profundos e íngremes. Algumas furnas apresentam acúmulo de água em seus fundos, formando lagos a dezenas de metros abaixo da superfície e com profundidades de até 30m. A conectividade de grandes massas de água entre as furnas e quaisquer outros corpos d’água é ausente, ou seja, são lagos completamente isolados de outros ambientes aquáticos. Essa configuração geológica impede a troca de material genético dos organismos aquáticos que ali vivem com organismos de outros ambientes.
De forma mais elementar, podemos considerar uma furna como o reverso de uma ilha – enquanto uma ilha literal é caracterizada por uma porção de terra cercada por água, o lago de uma furna é uma porção de água cercada por terra. Além das furnas que apresentam esses lagos isolados, o PEVV conta ainda com uma lagoa (conhecida como lagoa Dourada) conectada a um riacho, que ao contrário das furnas, permite fluxo gênico das espécies que ali habitam. E é nessa configuração geológica incomum que um processo de especiação alopátrica está acontecendo em tempo real, dando aos cientistas a oportunidade única de pegar a evolução no ato.
Os lambaris em questão são organismos comuns na bacia do rio Tibagi (rio que banha essa região), onde ocupam vários ambientes aquáticos, incluindo a lagoa Dourada do PEVV. E ainda não se sabe como, mas essa espécie de lambari foi parar dentro de uma das furnas (furna 2), sendo a única espécie de peixe que habita esse local. Algumas hipóteses como transporte inadvertido de ovos por aves (processo biológico natural conhecido como zoocoria) ou soltura deliberada por povos passados, como indígenas ou colonizadores, são explicações plausíveis para a chegada desses lambaris nesses locais improváveis. O fato é que temos um evento de separação geográfica de populações da mesma espécie em dois ecossistemas muito próximos e com características físico-químicas semelhantes.
Os lambaris que vivem na lagoa Dourada dividem espaço e interagem com outras dezenas de espécies de invertebrados, peixes como traíras, douradas e outros de pequeno porte, cágados, aves e outros organismos. Já os lambaris da furna 2 estão isolados e, embora existam algumas espécies de invertebrados e aves possam passar por ali, não existem outras espécies de peixes nesse ambiente. Isso significa que os lambaris da furna 2 não precisam lidar com competidores de outras espécies de peixe e não correm o risco de ser devorados por peixes maiores. Como consequência desse evento de isolamento geográfico, as pressões ecológicas sofridas pelas duas populações são diferentes e a evolução está agindo de forma a selecionar características distintas em cada uma das populações de lambaris.
Cientistas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), liderados pelo biólogo e professor Roberto Artoni, e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, liderados por mim, conduzem um grupo de pesquisadores que visa compreender os aspectos evolutivos dos lambaris sujeitos a esse extraordinário evento de separação de populações. Os projetos científicos vigentes buscam compreender como as diferentes pressões evolutivas moldam as populações desses lambaris presentes na furna 2 em comparação com os lambaris da lagoa Dourada.
As pesquisas iniciais apresentam resultados interessantes. A licenciada em Ciências Naturais e mestra em Evolução pela UEPG, Franciele Kerniske, liderou uma pesquisa em que a morfologia geométrica dos lambaris foi investigada através de radiografias digitais. Os resultados sugerem que na furna 2 os peixes apresentam alta frequência de deformidades na coluna e outras deformações corporais, anomalias que são reflexo da endogamia e da ausência de fluxo gênico entre a população isolada e populações externas.
Essas anomalias prejudicam a mobilidade e atividades biológicas consideradas comuns a um lambari. Caso esses indivíduos tivessem contato com um predador, dificilmente teriam chance de escapar com vida. Somente em situação de isolamento de outras espécies de peixe, em um ambiente como o que a furna proporciona, esses organismos anômalos têm a possibilidade de prosperar, reproduzir e deixar descendentes.
A bióloga e mestra em Evolução pela UEPG, Bruna Mayer, conduziu uma outra pesquisa com seus colegas que testou a capacidade de lambaris da furna 2 e da lagoa Dourada de reconhecer o perigo de serem devorados por um peixe predador. Os resultados sugerem que os lambaris da lagoa reconhecem os predadores e procuram se manter fora da zona de ataque. Já os peixes da furna 2 não têm essa aptidão e passeiam de forma inadvertida na cara do perigo. Os resultados desse estudo sugerem que os lambaris que vivem na furna estão isolados a tanto tempo que perderam a habilidade de reconhecer um predador e, portanto, são ingênuos aos ataques proferidos por peixes. Essa ingenuidade ecológica os torna muito mais suscetíveis a virar o almoço de peixes grandes em comparação com os lambaris da lagoa Dourada. Estudos de comportamento como esse revelam a sutileza das alterações evolutivas causadas por isolamento geográfico.
Além desses estudos apresentados, outras investigações em curso buscam compreender como a evolução age sob perspectivas genéticas, morfológicas e comportamentais dessa população solitária da furna 2. Porém, essa peculiaridade biológica é acompanhada de um alto risco de os lambaris serem extintos na furna (extinção local). Embora a presença desses peixes tenha sido cientificamente observada pelo professor Roberto Artoni em 1998, relatos de moradores locais sugerem que desde a década de 1970 os peixes já estavam por ali.
Artoni e seu time, na ocasião das explorações iniciais do local, descobriram que os lambaris ocorriam em duas das furnas (furnas 1 e 2) e realizaram pesquisas genéticas e morfométricas com essas populações, cujos resultados sugerem a ocorrência de um possível fenômeno evolutivo originado por evento de isolamento geográfico. Infelizmente, devido à fragilidade ambiental desse local, os lambaris da furna 1 foram extintos nas duas últimas décadas sem que os cientistas pudessem detectar com precisão a real causa dessa extinção. Por esse motivo, há que se concentrar esforços em proteger essa população isolada, pois não é todo dia que cientistas esbarram em um laboratório natural com uma população de vertebrado mantida em isolamento por tanto tempo!
Sugestões de leitura
– Kerniske FF, Pena Castro J, De la Ossa-Guerra LE, Mayer BA, Abilhoa V, Affonso IP, Ferreira Artoni R. 2021. Spinal malformations in a naturally isolated Neotropical fish population. PeerJ 9:e12239 DOI 10.7717/peerj.12239
– MAYER, Bruna Angelina. Aspectos comportamentais de um peixe neotropical que experimenta a ausência de peixes predadores sob a perspectiva da hipótese da ingenuidade ecológica. 2020. Dissertação (Mestrado em Ciências Biológicas) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2020.
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