Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
O projeto de lei nº 318/2021 declara, em seu artigo 1º, a criação de animais como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O artigo 2º informa que o reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil deve-se à natureza intrínseca de preservação e desenvolvimento das espécies animais, nos termos do parágrafo 1º do artigo 215 e do inciso VII do parágrafo 1º do artigo 225 da Constituição Federal.
“Artigo 1º – Esta Lei declara a criação de animais Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Artigo 2º – Fica reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil a atividade de criação e reprodução de animais, em razão da sua natureza intrínseca de preservação e desenvolvimento das espécies animais, consideradas como patrimônios naturais e culturais, integrantes da identidade e da memória da sociedade brasileira, nos termos dos artigos 215, §1º, e 225, §1º, VII, ambos da Constituição Federal.”
É necessário que se analise as palavras usadas no projeto de forma a delimitar exatamente sua intenção e abrangência. O termo criação, na verdade, esconde a realidade do cativeiro e da exploração dos animais. Assim, usar o termo criação é mais ameno do que cativeiro. Trata-se de eufemismo para tornar o projeto mais palatável. Já o termo animais é, por demais amplo, e envolve a fauna silvestre nativa, a silvestre exótica e a doméstica.
A fauna silvestre nativa é caracterizada pelas espécies originárias por seleção natural cuja distribuição original compreende território nacional, incluída as espécies migratórias. Como exemplo da fauna silvestre nativa pode-se citar jiboias, cascavéis, jararacas, papagaios, golfinhos, araras, onças, jacarés, antas, tatus, veados, iguanas, sucuris, macacos-prego, dentre outros. A fauna silvestre exótica também compreende as espécies oriundas de seleção natural, mas cuja distribuição original não compreende o Brasil. Leões, tigres, pogonas, pítons, cacatuas, corn-snakes, king-snakes, girafas, rinocerontes, hipopótamos, elefantes, gorilas, leopardos, dentre inúmeros outros animais, são exemplos de fauna silvestre exótica. Já os animais domésticos são aqueles cujas espécies decorrem das silvestres exóticas que, há milhares de anos, sofreram e permanecem sob seleção artificial promovida pelo ser humano. Cães, gatos, vacas, galos, cavalos, cabras, canários-belga são exemplos de animais domésticos.
Assim, ao usar o termo animais, o projeto de lei (PL) objetiva tornar não apenas a criação de cães, cavalos e gatos, mas de diversas outras espécies como patrimônio cultural. Pelas justificativas apresentadas, pode-se inferir que o uso genérico de animais não foi ingênuo ou despropositado. A justificativa cita os torneios de canto de pássaros (de espécies silvestres nativas), as aves mura (ou seja, galos de briga); cita peixes e, cita, ainda, zoológicos e criadouros (comerciais e conservacionistas). Ou seja, é realmente o objetivo do projeto tornar patrimônio cultural o cativeiro de todos os animais no Brasil. E não apenas o cativeiro, mas a briga de galos e outras crueldades também estão especificamente contempladas – não haveria outro motivo para a justificativa de o projeto de lei citar “aves mura” e não apenas galo. Aliás, citar “ave mura” e não “galo mura” já constitui uma forma de dissimular o intento real sem, porém, deixar de citá-lo.
Inicialmente, então, o projeto nivela, na mesma condição de cativeiro, animais de características totalmente distintas: domésticos, silvestres nativos e silvestres exóticos. O cativeiro não apresenta apenas diferenças quantos às espécies, mas também quanto a objetivos. Interessante que a justificativa do projeto de lei cita o benefício da companhia de animais durante a Covid-19, mas convenientemente se esquece de mencionar que a pandemia se origina justamente do uso de animais silvestres, cujo projeto também abarca.
No que se refere aos animais silvestres, a justificativa do PL exalta que foi graças à atividade de criadores que inúmeras espécies foram salvas da extinção. A avaliação, porém, não é, na melhor das hipóteses, precisa. Os criadouros de animais silvestres, principalmente a criação comercial, não são os responsáveis pela conservação ex situ (em cativeiro). Mas isto é uma confusão recorrente. De forma ingênua ou premeditada, criadores comerciais e mesmo conservacionistas, e até zoológicos que não estão envolvidos em programas de conservação, usam dessa imagem como forma de justificar, amenizar ou enaltecer sua atividade de manter animais cativos.
Existem duas grandes categorias de conservação: a conservação in situ e a conservação ex situ. A conservação in situ é caracterizada pela conservação no ambiente natural como, por exemplo, as espécies vivendo em unidades de conservação, terras indígenas e, em propriedades particulares, nas áreas de preservação permanente e reserva legal. A conservação ex situ é aquela onde a espécie é mantida em cativeiro. Um dos principais problemas de conservação ex situ é evitar que ocorra, mesmo de forma não intencional, a seleção artificial. Neste sentido, a escolha científica de parceiros reprodutivos é essencial para se concretizar a proposta de conservação. Ela deve evitar a consanguinidade ou seleção com base na comodidade do criador ou, ainda, nas características que ele preze. Para garantir que as escolhas serão pautadas na Ciência, é essencial que projetos de conservação sérios possuam a designação de um responsável por analisar e determinar os cruzamentos – o studbook keeper.
Óbvio que, com o objetivo de enaltecer o simples cativeiro, vários criadores têm arvorado que sua atividade contribui para a conservação quando, usualmente, o objetivo é meramente comercial e, em vários outros casos, apenas contemplacionista. É a banalização do termo conservação para justificar interesses particulares de cativeiro de animais silvestres, uma vez que, para agradar o mercado, os criadores comerciais selecionam características, na maior parte das vezes, incompatíveis com a conservação. Vale citar, por exemplo, o endocruzamento para refinar o canto em passeriformes e a busca por morphosnakes (serpentes com padrões diferentes dos exemplares selvagens).
O PL, também, não diferencia a criação autorizada do tráfico de animais silvestres. Ele torna qualquer criação de animais em Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro. Assim, o cativeiro ilegal, o tráfico de animais silvestres, também passa a ser considerado cultura.
O projeto de lei ainda apresenta outra ignóbil consequência: a inserção da criação, ou seja, do cativeiro como patrimônio cultural dificultará a possibilidade de responsabilização por maus-tratos em decorrência do parágrafo 7º do artigo 225 da Constituição Federal, em todas as práticas “desportivas” que utilizem animais. Assim, a rinha de galos e as corridas de galgos, dentre outras, estarão a apenas um passo de serem consideradas legais no Brasil. Certamente, considerando-se o artigo 2º do PL, esta questão deve ter sido considerada.
Artigo 225 da Constituição Federal:
“§ 7º – Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do artigo 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”
Portanto, o projeto de lei, se aprovado, representa um desastre para a fauna brasileira. Ele equipara a criação autorizada à ilegal, tornando a todas patrimônio cultural. Também não diferencia os animais por sua categoria de domésticos, silvestres nativos ou silvestres exóticos e nem tampouco pelos objetivos distintos de cada cativeiro. Finalmente, ainda dificulta que a rinha de galos e outras atividades hoje ilegais sejam tipificadas como maus-tratos. Assim, é importante que alguns criadores de cães e outros criadores autorizados, que têm se manifestado em defesa do PL, tenham a perfeita noção pelo que estão realmente lutando. Saibam que ao defender o PL, defendem também, por exemplo, o tráfico de animais silvestres. Finalmente, e certamente, o mais importante: a cultura, o patrimônio cultural deve se balizar por atividades de critério ético indiscutível e não sobre um comportamento questionável e que sujeita outras espécies ao sofrimento.
Assim, o projeto também peca por banalizar o conceito de patrimônio cultural brasileiro. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) possui critérios para reconhecimento de bens culturais imateriais do Brasil como patrimônio cultural e o PL busca essa determinação sem qualquer critério técnico. Considerar que a criação de animais é patrimônio cultural imaterial brasileiro é o mesmo que considerar que a música também o é. Haveria sentido, por exemplo, em considerar o samba como tal (o que, aliás, ocorre), mas não a música de forma genérica. Assim, até poderia fazer sentido considerar, por exemplo, a criação do fila brasileiro, mas não a criação de todos os cães como patrimônio cultural brasileiro. Ao generalizar, perde-se totalmente a importância e percepção da cultura regional ou nacional. O PL, portanto, banaliza não apenas o conceito de conservação, mas também o de patrimônio cultural brasileiro.
Existe uma enquete na Câmara dos Deputados sobre o assunto. Em 7 de março de 2021, ela registrava 84.583 votos a favor (concordo totalmente) e 83.114 votos contrários (discordo totalmente). Também se registrou 1.004 votos de concordo na maior parte. Para se opor a esse absurdo legislativo e proteger os animais, entre no link e vote em discordo totalmente. Também contate, ao menos, o deputado federal em quem votou na última eleição e exponha a ele seu ponto de vista.
Os animais não votam, mas você deve votar por eles.
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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