Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
nalinhadefrente@faunanews.com.br
Em primeiro lugar, não é um esporte. Caça não é esporte. Não existe esporte se não existe fair play e não existe fair play se um dos lados, quando derrotado, perde a vida enquanto com o adversário, se derrotado, nada acontece.
Você entraria em uma aposta se sua derrota significasse sua morte, mas sua vitória não mudaria nada para você ou para seu adversário? Vamos traduzir: se eu perder, eu morro; se eu vencer, você vive. Parece uma aposta justa para você? Pois não é justa e, portanto, a caça amadora não é esporte. Não existe caça esportiva na concepção correta da palavra, mas existe uma atividade na qual um ser inocente é morto por um fútil e fugaz prazer. Sofrimento e morte trocados por diversão.
Uma pesquisa nacional do Ibope, de 2019, revelou que 93% da população brasileira é contra a caça. O fato não é surpresa e o resultado é coerente com outra pesquisa realizada em 2003. Isto demonstra um posicionamento ético acerca do tema e deveria nortear os políticos de nosso Congresso Nacional. Infelizmente, por convicção ou oportunismo, alguns têm desconsiderado os desejos da população.
Nesse diapasão, alguns projetos de lei (PL) que liberam a caça no Brasil têm sido apresentados. O último deles foi o PL nº 5.544/2020, apresentado por um deputado federal de Santa Catarina e que recebeu parecer favorável por um deputado federal do Mato Grosso. O PL está na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, onde foi colocado em pauta pela presidente da comissão. Interessante que a presidente, apesar de dizer que gosta dos animais, coloca um projeto que libera a caça em votação, mas se nega a fazer o mesmo com o projeto (#animalnãoécoisa) que confere aos animais a dignidade de não serem tratados como coisas. A situação é minimamente inusitada ao se considerar tratar-se da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados o que, em princípio, deveria se atentar e zelar pela defesa dos animais e do meio ambiente.
Mas ao menos, por enquanto, o projeto não será votado. Ainda existem deputados comprometidos com o meio ambiente e o bem-estar animal. Eles conseguiram a retirada temporária do projeto da pauta.
O projeto de lei que libera a caça “esportiva” não esconde a verdadeira intenção: a prática da caça como atividade de diversão. Ganha um grupo de caçadores que não se importam em matar por prazer, ganha a indústria das armas e munições, perde a segurança pública, perdem os animais, perde o Brasil e a maioria da população brasileira (93% de seu povo que será ultrajado e agredido, não apenas moral, mas psicologicamente pela prática).
O projeto, além de liberar a caça no Brasil, também descriminaliza o uso de cães na atividade. O PL cita especificamente a modalidade de agarre onde o cão entre em luta corporal com o animal caçado. Hoje é uma prática cruel que incide em maus-tratos, mas presente na caça de javalis. A presença desse dispositivo, e na argumentação da justificativa do projeto, deixa evidente a assinatura de caçadores de javalis na sua origem. O fato expõe o interesse dos caçadores de javalis que em congresso de caça alardeavam: “o javali é nosso melhor funcionário!” E sim, a caça de javali que, a princípio é de controle, assumiu toda a característica de caça amadora ao se verificar que 70% dos javalis caçados são machos adultos. Outros detalhes negativos poderiam ser elencados, tal como a pena apenas de detenção para quem descumprir a lei – o que, na prática, implica em termo circunstanciado de ocorrência, que geralmente resulta somente no pagamento de cesta básica.
O projeto libera fazendas de caça quando, em seu inciso IV do artigo 3º, autoriza que as espécies poderão ser “criadas e recriadas para fins de conservação das espécies, repovoamento e da caça.” As fazendas de caça seguem um padrão observado na África do Sul e em outros países e subsidiam o absurdo da caça enlatada. Caça enlatada significa a criação de animais para depois serem soltos dentro da fazenda e caçados. É o caso dos leões na África do Sul. A prática é extremamente controversa, óbvio, mas comum. E então? Vamos criar onças, amansá-las para depois soltá-las para serem mortas? É isto que propõe o projeto. As pessoas que vem os animais apenas como dinheiro e diversão estão muito interessadas que esse absurdo seja implantado no Brasil.
Sob o aspecto ético não haveria o que discutir. Tecnicamente, o projeto e a argumentação apresentada para sustentá-lo são fracos e equivocados. Em sua justificativa, por exemplo, cita-se a Lei nº 5.197/1967 que trata da caça “esportiva”. Faz, na sequência, referência ao estado do Rio Grande do Sul que a regulamentou. Esquece-se, porém, de citar que o controle da atividade era executado em fichas individuais de caça altamente fraudáveis e que não havia postos obrigatórios de inspeção, entre outras fragilidades ou apenas aparentes controles. Então, quando se cita o modelo estadunidense, na verdade, ele não foi implantado de forma eficiente. Poder-se-ia dizer que foi um arremedo do modelo.
A justificativa do projeto também não expõe, talvez por conveniente ignorância, que com base na Constituição Federal de 1988, que veda a prática de atos cruéis aos animais, a caça “esportiva” foi proibida por decisão judicial. Afinal, a caça é indubitável e inerentemente cruel.
A justificativa também invade a discussão do tráfico de animais silvestres, cujos objetivos são diversos aos da caça> A liberação da caça, ao invés de coibir o tráfico, significará apenas mais uma pressão sobre as populações naturais. Na África, onde em diversos países existe a regulamentação da caça, a caça furtiva permanece como crime ambiental comum. Assim, a argumentação de que a caça autorizada diminuiria a caça ilegal não se sustenta. Mesmo a questão de arrecadação que, juntamente com o objetivo de prazer fútil do projeto alia-se ao interesse econômico, também carece de cálculos precisos para assegurar, inclusive, que os recursos gastos com fiscalização dedicada não suplantarão aqueles arrecadados pela atividade.
Dentre os países citados como exemplo positivo da caça, Estados Unidos, Austrália, Alemanha, França e Argentina, nenhum deles guarda correlação com as características da biodiversidade brasileira. O Brasil, como país tropical, possui maior diversidade de espécies com poucos indivíduos para cada uma. Diferente, por exemplo, de países de clima predominantemente temperado como Estados Unidos, Alemanha, França, onde a diversidade de espécies é menor e com populações maiores. Esse é apenas um dos aspectos básicos de Ecologia, mas não o único, ignorados pelo projeto em questão. Quanto à Argentina, há de se lembrar que javali, cervo Axis e outros problemas são enfrentados justamente em decorrência da introdução desses animais para a caça.
A manifesta deficiência técnica ou má fé do projeto de lei está principalmente exposta no inciso IV do artigo 2º, no qual se cita a caça como incentivo à conservação e à manutenção de habitat. Não existe atividade rural que tenha competitividade financeira com a criação de gado e, depois, com a cultura de commodities (soja e milho, por exemplo).
A proteção de habitat, no Brasil, se respalda na existência de unidades de conservação e, principalmente, em propriedades privadas, também na existência de reserva legal e áreas de preservação permanente, ambos dispositivos previstos no atual Código Florestal e que garantem a necessidade de manutenção da cobertura vegetal original nas fazendas. A caça não ampliará as áreas naturais; ao contrário, incentivará que nelas adentrem caçadores como uma pressão extra às populações animais ali refugiadas.
Esse verniz de conservação que é defendido por algumas pessoas, não se sustenta sob um olhar mais técnico. A dinâmica de populações, as interações entre predador e presa e, principalmente, questões relativas à frequência gênica em uma população devem ser consideradas. Enquanto caçadores almejam os animais mais vistosos, os maiores, os mais aptos; predadores abatem aqueles menos aptos em uma população. Enquanto os caçadores selecionam negativamente, os predadores naturais selecionam positivamente; simples assim.
A existência de animais em fazendas de caça na África não significa uma população saudável e viável, mas simplesmente alvos para abate. A população saudável e viável em sentido de conservação implicaria em não interferência na seleção natural, em fluxo gênico entre populações e populações grandes o suficiente para serem autonomamente viáveis. Uma fazenda de caça visa apenas possuir indivíduos suficientes para uma “taxa de desfrute” que a mantenha economicamente viável. É um negócio e seu objetivo é o lucro, não a conservação.
Digo verniz de conservação porque é uma camada fina, transparente e que não esconde o real propósito: o lucro. A caça “esportiva” atende aos anseios de apenas uma pequena parcela da população, mas como se trata de atividade absurda, desprezível e antipática, necessita se revestir de desculpas para buscar apoiadores ou inocentes úteis.
Devemos sempre nos lembrar: não existe esporte se um dos lados está em desvantagem. No caso da caça esportiva, a desvantagem custa-lhe a vida e apoiá-la custa-nos a decisão de estar do lado certo da ética e da História. No futuro, quem lutou contra essas propostas absurdas poderá se honrar de estar do lado da justiça como o estiveram quem lutou contra o aparthaid, contra a escravidão, pelos direitos humanos, pelo voto das mulheres, contra a morte em nome da honra, contra o nazismo e diversas outras máculas da história humana. Em cada tempo sempre houve pessoas pela justiça e aquelas que propagavam sofrimento.
Tenho orgulho e certeza de estar do lado correto.
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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