Por Raul Rennó Braga
Biólogo, mestre e doutor em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, é professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisador colaborador do Laboratório de Análise e Síntese em Biodiversidade (LASB) da UFPR e do Laboratório de Ecologia e Conservação (LEC) da mesma instituição. Atua principalmente com pesquisas relacionadas a ictiologia e a invasões biológicas.
aquaticos@faunanews.com.br
A poluição ambiental talvez seja a forma mais conhecida de degradação do meio ambiente, principalmente quando pensamos na água como o recurso mais importante para a humanidade. As imagens de mares tomados por plásticos, tubulações despejando esgoto direto nos rios e peixes mortos tomando a superfície da água circulam frequentemente nos meios de comunicação e promovem a indignação de muitas pessoas. De fato, esse problema, apesar de muito antigo, ainda é de extrema relevância.
De acordo com o Instituto Trata Brasil, apenas 54,1% dos brasileiros têm acesso à coleta de esgoto, sendo que ao considerar apenas a região Norte esse número cai para 12,3% da população. Em 2017, o Brasil lançou o equivalente à 5.622 piscinas olímpicas de esgoto não tratado na natureza. Soma-se a isso a poluição oriunda das atividades agrícolas, como fertilizantes e pesticidas, e de atividades industriais e da mineração.
Analisando os dados de saneamento, podemos pensar que a solução seria basicamente ampliar a rede de coleta de esgoto e, obviamente, o seu tratamento. Apesar dessa solução ser fundamental, nem todos os problemas de poluição das águas decorrentes dos efluentes domésticos seriam resolvidos.
Vamos pensar.
O que estamos mandando para a estação de tratamento de efluentes quando apertamos o botão de descarga do vaso sanitário? Provavelmente, sua resposta será fezes e urina, correto? Sim, essa resposta não está errada, mas não é só isso! Devemos considerar também que juntamente com as excretas eliminadas está uma certa quantidade dos princípios ativos dos medicamentos que tomamos. Essas substâncias podem então ser degradadas no processo de tratamento, a depender da substância, ou podem acabar atingindo os corpos hídricos. Obviamente que no caso do esgoto não tratado, esses medicamentos chegarão diretamente aos rios, lagos ou mares.
Cada vez mais, novas substâncias têm sido encontradas na natureza poluindo os rios. Essas substâncias são chamadas de contaminantes emergentes devido ao fato de que são muitas vezes novas para a Ciência e ainda não há legislação específica que regule a presença desses compostos nos recursos hídricos. Também devemos considerar que por serem novas é mais difícil que o processo de tratamento de efluentes seja capaz de eliminar essas substâncias.
Esses contaminantes emergentes podem ser remédios, hormônios, drogas ilícitas, produtos de higiene pessoal, repelentes, nanomateriais, entre outros. No caso de fármacos, a contaminação ambiental ocorre basicamente de três formas. Medicamentos que são utilizados de forma oral, injeção ou infusão são eliminados por excreção após o consumo. No caso de medicamentos de uso tópico, como pomadas, são removidos durante o banho. Por fim, há quem ainda descarte medicamentos vencidos no esgoto.
Sob a perspectiva de um problema de saúde humana, parece que as concentrações encontradas na água são muito baixas e seriam necessários milhares de litros de água para que, por exemplo, o princípio ativo de um remédio para dor de cabeça tivesse o efeito equivalente a um comprimido. No entanto, as concentrações encontradas são suficientes para afetar os organismos aquáticos como, por exemplo, os peixes. Devemos lembrar que fisiologicamente existem muitas semelhanças entre o organismo de um peixe e de um ser humano, assim a presença de contraceptivos na água está afetando a atividade reprodutiva desses animais. Juntamente com contraceptivos, os principais impactos na fauna de peixes estão relacionados à presença de antibióticos, analgésicos e antidepressivos.
Algumas espécies de peixes são naturalmente hermafroditas e capazes de mudar de sexo durante a sua vida para aumentar o sucesso reprodutivo. No entanto, espécies que não possuem essa capacidade, ao serem expostas a hormônios femininos, acabam por sofrer disfunções reprodutivas. Por exemplo, indivíduos machos expostos a esses hormônios começaram a produzir células reprodutivas femininas. Não só isso, mas as células reprodutivas masculinas também foram afetadas negativamente. Ao medir a capacidade de movimentação dos espermatozoides houve uma significativa redução da mobilidade. Por fim, o número de células fertilizadas que se tornam alevinos diminuiu. Esse efeito certamente causa um importante impacto na população dos peixes afetados.
Na Suécia, pesquisadores encontraram altas concentrações de um remédio para tratamento da ansiedade tanto na água quanto no tecido muscular de peixes. Para testar o efeito da substância (oxazepam), os pesquisadores realizaram experimentos em laboratório com concentrações similares a encontrada no ambiente natural contaminado e compararam o comportamento com peixes sem exposição ao fármaco. Após uma semana, os resultados mostraram que os peixes expostos ao medicamento nadavam mais ativamente, buscavam mais intensamente por comida, se tornaram menos sociáveis (não formavam cardumes) e mais ousados. Peixes com apetite estimulado podem esgotar mais rapidamente seus recursos alimentares e, por outro lado, esses mais ousados e ativos que não formam cardumes também podem se tornar alvos mais facilmente capturados por predadores.
Os impactos dos contaminantes emergentes podem ainda ser transferidos a todos os níveis da cadeia alimentar, uma vez que, a depender da substância, poderá ocorrer o processo de bioacumulação e biomagnificação que transfere os compostos e os acumula à medida que um organismo se alimenta de outro já contaminado. Assim, é fácil perceber que os impactos podem atingir todo o ecossistema.
Quais seriam as soluções para esse problema? Talvez existam três principais formas de agir. A primeira diz respeito à educação da população em relação ao descarte correto dos medicamentos e à responsabilização da indústria farmacêutica para coleta e correta destinação dos remédios vencidos ou não mais utilizados. A segunda está relacionada ao tratamento dos efluentes. O tratamento tradicional, apesar de ajudar, não é capaz de eliminar completamente os contaminantes emergentes. Nesse sentido, o desenvolvimento de novas técnicas visando essa problemática é imprescindível. A terceira frente de combate é a implementação de legislação específica que englobe cada vez mais os novos compostos. Obviamente que esse processo deverá ser contínuo, uma vez que novos compostos estão constantemente sendo desenvolvidos.
Está claro que um problema complexo como esse não terá uma solução simples, fácil e rápida, mas o problema já foi detectado e alguma ação deve ser iniciada pela população (descarte correto), iniciativa privada (responsabilização pelo descarte correto) e governo (aumento da rede de coleta de esgoto e implementação de legislação específica), além da parceria entre iniciativa privada e o poder público no desenvolvimento de novas tecnologias para tratamento de efluentes.
– Leia outros artigos da coluna AQUÁTICOS
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)