
Por Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Quase a totalidade dos papagaios-verdadeiros (Amazona aestiva) enviados pelos centros de triagem e de reabilitação de animais silvestres em funcionamento no estado de São Paulo para criadouros comerciais nasceram na natureza e foram vítimas do tráfico de fauna. Com base em dados oficiais do governo paulista, a ONG Proteção Animal Mundial descobriu que, entre 2015 e 2018, 33% de todas as aves da espécie que deram entrada nos centros foram transformadas em matrizes para comerciantes de animais – com quem permanecerão o resto da vida em cativeiro. Desses 470 papagaios, 87,6% (412) nasceram livres e foram vítimas de traficantes de fauna.

O número está no relatório Crueldade à Venda – O problema da criação de animais silvestres como pet, publicado pela Proteção Animal Mundial no segundo semestre de 2019. O documento faz parte da campanha Animal Silvestre Não é Pet, noticiada pelo Fauna News em julho do ano passado. O governo paulista admite uma falta de fôlego em fomentar outros tipos de empreendimentos de fauna que viabilizem ampliar a quantidade de solturas – hoje em 42% do total de papagaios-verdadeiros atendidos pelos centros.
Na sexta-feira, 14 de agosto, o Fauna News publicou a reportagem “Tráfico de papagaios-verdadeiros: começou a temporada em que milhares vão perder a liberdade para se tornarem pets”, sobre o intenso, e bem conhecido pelo poder público, ataque de quadrilhas de traficantes de fauna aos filhotes e ovos da espécie no Cerrado brasileiro. O Mato Grosso do Sul, o atual epicentro do problema, é o Estado de onde os bandidos sequestram as aves para abastecer, principalmente, a demanda da Região Metropolitana de São Paulo.
Uma estimativa do presidente da ONG SOS Fauna, Marcelo Pavlenco Rocha, indica que pelo menos 12 mil filhotes são trazidos anualmente para a capital paulista e cidades vizinhas. O mercado ilegal de filhotes de papagaios-verdadeiros mostra-se imenso, apesar de sua real dimensão ser desconhecida.
De acordo com a pesquisadora e coordenadora do Projeto Papagaio-verdadeiro, Gláucia Helena Fernandes Seixas, mais de 11 mil filhotes deram entrada no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) após serem apreendidos por órgãos de fiscalização no Estado nos últimos 32 anos. E a ambientalista destaca: somente uma pequena parte das aves é interceptada pala Polícia. A grande maioria acaba se transformando em bicho de estimação na casa das pessoas ou morre durante as diversas etapas do tráfico.
Falta de estrutura gerando cativeiro
Por meio de informações conseguidas pela Lei de Acesso à Informação junto à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, a equipe da Proteção Animal Mundial analisou os números de papagaios-verdadeiros que deram entrada nos centros de triagem e reabilitação de animais silvestres (conhecidos como Cetas e Cras ou também como Cetras) que funcionam em território paulista. Esses centros, que pertencem à União, ao Estado, a municípios e a entidades particulares, são responsáveis por receber fauna silvestre apreendida pela polícia e outros órgãos de fiscalização com traficantes de animais ou em cativeiro doméstico ilegal, resgatada por necessitar de atendimento veterinário (atropelamentos, acidentes com linhas de transmissão de eletricidade, colisões com edificações, etc.) ou entregue voluntariamente pela população.
No estado de São Paulo há 14 centros de atendimento para fauna não aquática em funcionamento, sendo um do Ibama (em Lorena), um do Estado (no Parque Ecológico do Tietê, na capital paulista), quatro municipais (Araras, Barueri, São Paulo e Presidente Prudente) e o restante de entidades particulares.
De acordo com a legislação e as normas que regulamentam a destinação da fauna encaminhada aos centros de triagem e de reabilitação, os animais silvestres têm de ser prioritariamente destinados para soltura após receberem cuidados de especialistas. Dessa forma, tenta-se garantir o bem-estar deles bem como a conservação das espécies e o equilíbrio dos ecossistemas.
No caso dos animais que não conseguem se recuperar de problemas físicos ou comportamentais que podem comprometer a sobrevivência em vida livre ou na impossibilidade de o poder público ter condições de envio dos reabilitados para suas áreas de ocorrência natural, a legislação prevê a destinação para criadouros com fins científicos, de conservação ou comerciais, zoológicos e mantenedouros de fauna. Portanto, o encaminhamento dos papagaios-verdadeiros para criadouros comerciais não é ilegal.
A partir dos registros oficiais dos centros de triagem e de reabilitação paulistas, a Proteção Animal Mundial identificou que 42% dos papagaios-verdadeiros que deram entrada nos Cetas e Cras foram encaminhados para solturas, 33% para criadouros comerciais e 25% tiveram outras destinações. Das 470 aves da espécie encaminhadas para os criadouros comerciais, 412 (87,6%) eram vítimas do tráfico e chegaram aos centros por meio de apreensões ou foram entregues voluntariamente pela população.
Os criadouros comerciais solicitam e aceitam para serem suas matrizes de reprodução somente aves saudáveis. Ou seja, parte desses papagaios-verdadeiros, em tese, teriam potencial para retorno à vida livre.
Apesar de ser legal, a Proteção Animal Mundial não concorda com essa destinação. De acordo o relatório Crueldade à Venda da ONG, existe um ciclo vicioso envolvendo o tráfico de fauna e a criação comercial de animais silvestres para o mercado pet, já que animais traficados que são apreendidos e poderiam voltar à vida livre acabam sendo usados para a reprodução de filhotes que serão vendidos. Esse comércio, ainda que legal, reforça o hábito da população de criar animais silvestres como pets, alimentando o tráfico.
“Este dado trouxe um grande espanto para nós. Esse ciclo vicioso demonstra como a gestão da fauna no Brasil é negligenciada, pois por anos milhares de papagaios-verdadeiros se tornaram matrizes da criação comercial, que por sua vez investe no aumento da demanda que alimenta o tráfico. Muitos criadores comerciais têm até 100% de suas matrizes originárias da entrega de animais por parte do Estado. Não acredito que o estado de São Paulo tenha destinado esses animais como uma forma de privilégio. Enxergo isso como um gargalo do sistema. Tenho certeza de que a gestão de fauna do estado também tenha se espantado com esses dados, até porque análises como a que fizemos não são publicadas com frequência, o que dificulta sua observação”, afirmou o biólogo e gerente de Campanhas de Vida Silvestre da ONG, Maurício Forlani.
O coordenador de Fiscalização e Biodiversidade da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do estado de São Paulo, Sérgio Marçon, em entrevista para o Fauna News realizada em janeiro, afirmou ser provável que o grande número de destinações aos criadores comerciais ocorra por falta de alternativas. “Temos que contar com quem se cadastra no sistema. Não é o Estado que produz as áreas de solturas e outras alternativas”, afirmou.
Marçon admite que, involuntariamente, o sistema pode estar retroalimentando o problema. Para ele, também há uma carência de centros de triagem e de reabilitação, o que impede que os animais apreendidos fiquem mais tempo sob cuidados dessas instituições até que se consiga, por exemplo, garantir a soltura em áreas cadastradas nos órgãos ambientais ou o envio para cativeiros que não sejam comerciais.
De acordo com a veterinária e coordenadora do Centro de Recuperação de Animais Silvestres do Parque Ecológico do Tietê (Cras PET), Liliane Milanelo, o que determina o destino dos papagaios-verdadeiros a empreendimentos de fauna em cativeiro é a inaptidão para soltura. “A escolha do local é diretamente proporcional a disponibilidade de vagas, independente da categoria (mantenedor, zoológico, instituição de pesquisa ou criadouros comerciais). Por ser uma espécie comum no cativeiro, as vagas para recepção são muito escassas”, relatou.
Nos últimos três anos, o Cras PET, que fica na capital paulista e é gerido pela Fundação Parque Zoológico de São Paulo (governo do Estado), recebeu 173 papagaios-verdadeiros – 155 somente em 2018. Nesse ano, 106 aves (68,4%) foram destinadas a criadores comerciais.

A falta de Cetas e Cras (hoje também conhecidos como Cetras) é um problema estrutural na gestão de fauna de todo o país. No Brasil, atualmente estão em funcionamento 46 centros, com a grande maioria superlotada e boa parte com infraestrutura deficiente. Portanto, quando os animais atendidos se recuperam e não há condições da realização de solturas em um tempo razoável, muitos acabam destinados para os criadores comerciais.
“O processo de reintrodução demanda tempo, espaço e recurso; fatores que a maioria dos centros do país não têm em abundância. Há também a falta de investimento no Brasil para a reintrodução desses animais, basta olhar que muitos Estados têm apenas um Cetas ou, em alguns caso, nenhum. Os centros de reabilitação estão sempre lotados. A destinação à criação comercial foi vista por algum tempo como uma forma de dar mais qualidade de vida a esse animal e tem a finalidade de liberar espaço para que outro tenha a chance de se reabilitar”, comenta Forlani.
E o presidente da ONG paulista SOS Fauna, Marcelo Pavlenco Rocha, garante que a alegada inaptidão dos papagaios para determinar a possibilidade de soltura é uma questão relacionada mais a problemas físicos do que a comportamentais. “Se me derem um grupo de 100 papagaios, mesmo com alto nível de humanização, eu consigo promover a soltura deles deles. O problema é quanto isso vai custar, quanto tempo vai levar e onde eu vou fazer”, salientou o ambientalista para questionar a não priorização desse tipo de trabalho pela gestão de fauna do país.
Em agosto de 2012, Pavlenco realizou a soltura de 62 papagaios-verdadeiros que foram apreendidos ainda filhotes em setembro de 2006 em Quadra (SP). Durante quase seis anos, a SOS Fauna cuidou e reabilitou as aves sem qualquer ajuda do poder público. O retorno à liberdade ocorreu em uma fazenda de Nova Andradina (MS), região de onde os animais haviam sido coletados por traficantes de fauna.
O exemplo de Pernambuco
O biólogo e coordenador do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) Tangará da Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH), Yuri Marinho Valença, é responsável por um projeto de reabilitação e soltura de papagaios-verdadeiros. Batizado de Papagaio da Caatinga, o projeto é uma iniciativa desenvolvida desde junho de 2010 por meio de uma parceria com o Centro de Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna) da Universidade do Vale do São Francisco (Univasf).

O projeto utiliza três áreas de soltura nas áreas rurais dos municípios de Exu, Salgueiro e Lagoa Grande. Até hoje, já foram soltos 414 papagaios-verdadeiros, que são constantemente monitorados. “A existência de áreas de soltura cadastradas com potencial para receber os papagaios evita a destinação deles para criadouros. No Tangará não enviamos essas aves para os comerciantes”, afirma Valença, que já conseguiu devolver para natureza, com sucesso, um papagaio-verdadeiro que viveu 30 anos em cativeiro. “Já faz oito anos que o soltamos e ele está lá, inclusive se reproduzindo.”