Análise de Dimas Marques
Editor-chefe
dimasmarques@faunanews.com.br
Em 3 de janeiro de 1967, entrava em vigor a lei nº 5.197, conhecida também como Lei de Proteção à Fauna. Nela constam artigos que deixam claro ser proibida a utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha de animais da fauna silvestre sem autorização do poder público, bem como o comércio deles. Os animais em vida livre são, de acordo com esta lei, “propriedades do Estado”.
Ainda assim, por causa da pouca fiscalização, muita gente continuou comprando ou capturando animais silvestres para criá-los como bichos de estimação.
Em 12 de fevereiro de 1998, passa a viger a Lei de Crimes Ambientais (lei nº 9.605). Está nela:
“Artigo 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:
Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas:
(…) III – quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.”
Por conta da pouca fiscalização e das penas brandas contra os infratores, os caráteres punitivo e educativos dessa lei são muito pouco efetivos na sociedade. A fauna silvestre continua sendo traficada por bandidos e utilizada por pessoas de bem como se não houvesse regras a serem seguidas.
Para piorar essa situação, quando o poder público age por meio de seus órgãos de fiscalização, partes da Justiça e da imprensa entendem que o certo é devolver o animal para quem cometeu um ato ilegal .
“Depois de muita luta, a história da Lourinha e do casal José Juliano e Erly Gonzaga dos Santos Juliano teve um final feliz. O papagaio, que havia sido apreendido pela Polícia Militar Ambiental, voltou para a casa da família, nesta sexta-feira (21), em Presidente Prudente (SP).
Antes do reencontro, Erly Gonzaga dos Santos Juliano teve de enfrentar uma batalha judicial pela guarda do animal. A Lourinha chegou à família em 1996 e há 24 anos está na casa. No entanto, no início do mês de agosto deste ano, uma fiscalização da Polícia Militar Ambiental verificou que o animal não era registrado e estava em situação irregular em cativeiro. A mulher foi multada e o papagaio acabou apreendido.
Diante da situação, a tristeza de Erly foi tanta que ela e a família decidiram que tinham de fazer algo para tentar reverter o que havia ocorrido. Eles procuraram um advogado e foram à Justiça e, em uma primeira análise, o Poder Judiciário concedeu uma liminar determinando que a Lourinha voltasse para a casa da família.
A Polícia Ambiental apontou que, no passado, existia uma cultura de ter papagaios e outros animais silvestres em casa, mas que atualmente isso é crime.
“O dano coletivo é grande quando esses animais são retirados da natureza. O impacto é grande”, falou o capitão Júlio César Cacciari, da Polícia Ambiental.
O capitão ainda disse que não é comum acontecer esse tipo de ação, mas que acontece. Ele ainda explicou que o processo por crime ambiental, mesmo com a sentença favorável à família, continua. A multa aplicada, no valor de R$ 500, também.
(…) Na casa de Erly, antes da volta da Lourinha, a expectativa foi grande.
“Aqui ela é tratada como membro da família, como um filho. Ela vive solta, mas não voa. A gente sempre dá frutas, sementes, coisas naturais. Fiquei sem chão sem minha Lourinha”, contou Erly.
A Justiça determinou que o papagaio voltasse para a casa no prazo de 48 horas. A Lourinha estava em Assis (SP), para onde havia sido levada pela Polícia Ambiental.
Erly e o marido, José Juliano, foram até a cidade, que fica na região de Marília (SP), para reencontrar o animal e para trazê-lo de volta para casa. O reencontro foi emocionante.
A tristeza que existia quando a Lourinha foi levada já não persiste mais na casa da família. Com o papagaio de volta, agora é tudo só alegria.
(…) Mesmo com o retorno, a história da Lourinha pode ter outros capítulos. O processo ainda está em andamento no Poder Judiciário e somente com uma decisão definitiva a família vai ter a certeza de que ela não vai mais embora. Erly está confiante de que nada mais vai separar as duas.
“Nós estamos muito confiantes, tenho certeza de que ela nunca mais vai ser tirada de nós”, pontuou Erly ao G1.” – trechos da matéria “Após determinação da Justiça, moradores de Presidente Prudente recebem de volta papagaio apreendido pela Polícia Ambiental”, publicada em 21 de agosto de 2020 pelo portal G1
Na sociedade impera uma leitura antropocêntrica do mundo, em que a natureza está disponível para atender os anseios e necessidades dos homens. Não se enxerga o homem como parte de um sistema com elementos interdependentes e que outras formas de vida têm direitos intrínsecos a serem respeitos.
A partir dessa visão de mundo, historicamente a sociedade considera plausível retirar a liberdade de um animal para criá-lo como bicho de estimação. E utilizamos o amor como justificativa para manter tal situação.
É isso que aconteceu com o papagaio de Presidente Prudente, que ao receber o nome de Lourinha teve arrancada a possibilidade de ser animal silvestre pleno, vivendo na natureza e cumprindo suas funções ecológicas (como ajudar a manter a vida nas matas ao espalhar as sementes com que se alimenta).
Mas a equipe do portal G1 não enxerga a situação assim. Eles acham que o final feliz está no retorno da ave ao aconchego de uma família humana. Não levaram em consideração o tanto que esse papagaio sofreu ao ser traficado e que o tráfico de animais só existe porque tem gente de bem que o sustenta.
A imprensa antropocêntrica desconsiderou o horror a que foi submetido aquele filhote de papagaio que agora chama-se Lourinha. Essa mesma imprensa também não entrevistou um especialista na reabilitação de animais silvestres que, com certeza vai afirmar haver possibilidade de recuperar aquela ave. Papagaios com mais de 20 anos de cativeiro já foram reabilitados e vivem hoje livres – há exemplo em Pernambuco e em Santa Catarina.
A decisão liminar da Justiça também se mostrou antropocêntrica. Será quem o bem-estar do animal foi realmente levado em consideração ou o que pesou foi a dor da família humana que criou com o animal vítima do tráfico?
A devolução de Lourinha para a família não é definitiva e o mérito da ação não foi julgado. A Justiça ainda pode fazer valer o caráter educativo da legislação ao dar exemplo para a sociedade de que há problemas no comprar um animal que deveria viver livre.
O poder público também não ajuda a resolver esse problema. Afinal, não possui projetos de sensibilização e conscientização da população sobre o problema e também não incentiva ou promove atividades que possibilitem a reabilitação de animais traficados que são apreendidos pelos órgãos de fiscalização. Se os centros de triagem e de reabilitação e as áreas de soltura e monitoramento tivessem melhores condições de fazer seu trabalho, com certeza juízes teriam a convicção de que o melhor para os animais apreendidos, para os ecossistemas e para a sociedade está no esforço de devolução deles à vida livre – e não com esse tal amor humano.