Casal que há mais de 30 anos viaja até os lugares mais remotos do Brasil para fotografar a natureza. São adeptos da ciência cidadã, ou seja, do registro e fornecimento de dados e informações para a geração de conhecimento científico
observacaodeaves@faunanews.com.br
No final da década de 1990, fizemos nosso primeiro passeio turístico no Pantanal. Era um pacote com hospedagem em Poconé (MT), em um hotel que ficava na Transpantaneira, e alguns dias na Chapada dos Guimarães. Essa primeira apresentação do Pantanal, para nós, não foi muito empolgante.
As atrações oferecidas pelo guia se resumiam a passeios de barco com paradas para pesca de piranhas e durante o trajeto ele se esforçava em encontrar um tuiuiú, como se essa fosse a única ave merecedora de atenção na região. O curioso é que em todos os passeios, encontramos um único tuiuiú e chegamos até a pensar que talvez essa ave estivesse em extinção. Ao entardecer, ainda de barco, fomos levados até um local onde centenas de garças pousavam em uma árvore para passar a noite.
De volta ao hotel, o jantar tinha como entrada uma sopa de piranhas que era alardeada como afrodisíaca! Após a refeição, tínhamos a maior atração da viagem: focar os jacarés à noite no rio. Essa atividade consistia em ir até a beira do rio e apontar um potente farolete para a água, iluminando os olhos dos jacarés que lá estavam – o rio fica cheio de pontos luminosos que eram os olhos dos jacarés refletindo a luz dos faroletes. Era muito jacaré!
Os anos passaram, nos tornamos observadores de aves e o Pantanal estava entre os primeiros lugares, na nossa lista de desejos, para passarinhar. Em 2012, planejamos e realizamos nossa segunda viagem à região, agora com um objetivo bem diferente de nossa primeira. Escolhemos o mês de agosto, época da seca, que permite longos passeios a pé e aproveitar muito mais as passarinhadas, além do fato de ser uma época onde praticamente não existem mosquitos. Por indicação de amigos, escolhemos a pousada Araras Eco Lodge e, antes da ida, já contratamos através da pousada, um guia local – o Roberto, que conhecia muito bem a região e as aves locais.
A viagem pela Transpantaneira já é uma grande experiência
O pacote que contratamos também incluía o translado entre o aeroporto e a pousada, que foi feito em uma van e na companhia de um casal de turistas de Malta que estava visitando o Brasil pela primeira vez. No caminho, uma parada sempre obrigatória é no portal de entrada da Transpantaneira, que é uma estrada de terra com 150 Quilômetros, ligando cidade de Poconé até Porto Jofre. Ela percorre grande parte do Pantanal e tem muitas pequenas pontes de madeira para cruzar os rios e áreas alagadas. Na época da cheia, alguns dos pontos da estrada se tornam intransitáveis até para veículos 4×4.
No caminho para a pousada, fizemos outra parada para fotos na Transpantaneira, em uma das poucas poças d’agua que encontramos no caminho. O calor era muito intenso e a poeira entrava em nossas narinas e prejudicava, inclusive, a nitidez das fotos. A água dessa poça era compartilhada de forma aparentemente pacífica por dezenas de jacarés, capivaras, cabeças-secas, garças e pavãozinhos-do-para, que em voo mostram a beleza do desenho e cores em suas asas.
A Pousada
Chegamos na pousada e conhecemos as instalações do local, que eram bem simples, mas aconchegantes. Os quartos ficavam um ao lado do outro, com corredor à frente que era usado como varanda comum a todos eles. A Susana ficou muito contente em ver que era possível curtir a rede nessa varanda, mas não teve coragem ao ver que a menos de 15 metros tinha um pequeno laguinho lotado de jacarés sem que houvesse obstáculo entre eles e a rede.
Na pousada tinham poucos hospedes e nós éramos o único casal de brasileiros. Tinha um observador de aves da Inglaterra, o casal de Malta e uma excursão da terceira idade do Japão. Foi muito interessante perceber que os funcionários do estabelecimento tinham o domínio básico do idioma inglês, permitindo plena comunicação com os hóspedes. Em conversa com eles, disseram que tinham aprendido o idioma com autoestudo e que do contrário não conseguiriam se manter no emprego. Presenciamos eles em hora de folga, decorando e treinando os nomes das aves em inglês. Para nós, esses funcionários foram um exemplo de superação.
O calor e a seca propiciando grandes fotos
O calor era muito intenso, o ar extremamente seco e a nossa pele ardia com a temperatura alta. Em qualquer sombra sempre se encontrava algum animal se protegendo do Sol. Nas caminhadas pelas trilhas, a cor predominante era o marrom das folhas secas que estalavam ao serem pisadas. Aprendemos com nosso guia Roberto, que tínhamos que evitar esbarrar nas folhas das touceiras, pois nelas tinham várias pintinhas brancas que eram carrapatos em seu estágio inicial de vida, a espera de um hospedeiro. Para evitar se tornar um hospedeiro, aprendemos também que tínhamos que usar as meias por cima das calças e manter as camisetas sempre para dentro das calças – realmente dá um bom resultado, já que não pegamos nenhum nessa viagem e essa boa prática evitou muitos carrapatos em viagens futuras.
Na pousada e nas imediações, qualquer local com água sempre dava a oportunidade para um bom registro fotográfico – era esperar e ter paciência, como essa foto dos dois araçari-castanhos que compartilhavam a água no mesmo local. Foi esperar que os dois estivessem na mesma posição para fazer esta foto.
A real ameaça não era a onça
A pousada tem várias trilhas, sendo uma com passarela de madeira e uma torre de observação. Um dia, após o almoço, combinamos com o guia Roberto que faríamos a passarinhada da tarde a partir das 16 h, pois as aves estariam escondidas com tanto calor. A Susana foi descansar após o almoço e eu, Wagner, decidi dar uma volta sozinho em uma das trilhas próximas.
Nessa caminhada, sozinho e já distante da pousada, escutei o rugido de uma onça bem alto, como que se estivesse brigando com outro bicho. Paralisei, pois o rugido era bem próximo e fiquei alguns instantes pensando em voltar correndo. Finalmente decidi retornar devagar, fazendo o mínimo de ruído para não ser percebido. Cheguei na pousada são e salvo.
Quando nos encontramos com o Roberto na hora combinada, comentei o ocorrido e ele achou que, possivelmente, a onça estaria predando um jacaré ou uma capivara. Decidimos voltar ao local para tentar encontrar os restos mortais da vítima da onça. Quando chegamos onde eu tinha escutado os rugidos, a Susana decidiu aguardar na trilha enquanto eu e o Roberto entrávamos na mata para tentar localizar o que tinha restado da presa.
Quando já tínhamos caminhado uns 200 metros, escutamos os gritos desesperados da Susana nos chamando. Voltamos correndo também desesperados, sem saber o que estava acontecendo – pensando que talvez fosse a onça que tinha aparecido. Ao chegar no local, a encontramos literalmente cercada por dezenas de macacos, alguns muito próximos, a menos de um metro. Chegamos gritando e eles bateram em retirada para nosso alívio. Concluímos que os macacos tinham achado que existia alimentos na mochila que estava nas costas da Susana e estavam querendo atacá-la para pegar a mochila.
Anos depois, conhecemos um biólogo especialista em primatas que confirmou a nossa suspeita e afirmou que os macacos iriam atacá-la pois eles tinham identificado uma fêmea sozinha, possivelmente com alimentos. Eles bateram em retirada, pois tinham percebido a chegada dos machos. Disse que poderia ter sido trágico se não tivéssemos chegado a tempo.
Passeio de canoa e um inesperado encontro
Um dos passeios bem emocionantes foi com uma canoa em um pequeno riacho que tinha cerca de quatro a cinco metros de largura. Ele era tão raso que podíamos ver as pedras do fundo – até parecia que o barco iria encalhar nelas. Esse riacho tinha vegetação dos dois lados e, em alguns locais, ele ficava mais estreito e a plantas se uniam na parte de cima e encostavam no rio, fechando a passagem do barco. Tínhamos que forçar a passagem entre os galhos usando os remos.
De repente a Susana falou “olha isso”!! Demorou alguns instantes para que pudéssemos enxergar o que ela estava vendo. Era o menor dos martins-pescadores, o martinho, que depois passou a ser chamado de martim-pescador-miúdo. Ele estava a menos de dois metros de nós e na altura de nossos olhos. Algo tão pequeno, com cerca de 12 centímetros, era muito difícil de ser observado. A Susana ficou muito emocionada por ter localizado essa espécie e ver um ser tão pequeno ali pertinho.
O martim-pescador-miúdo se demonstrou amigável, permitindo várias fotos e nos olhando sem demonstrar qualquer medo. Ficamos alguns minutos admirando esse minúsculo pássaro, até que ele deu o seu mergulho no riacho em busca de alimento e se afastou de nós.
Vida selvagem intensa
Tivemos várias oportunidades de ver como a vida é presente e intensa no Pantanal. Em uma de nossas saídas, estávamos em um lugar bem ermo de vegetação baixa e, de repente, escutamos um barulho alto e bem próximo. Há uns oito metros estava passando uma vara de porcos-do-mato, formando uma fila que não tinha fim. Podemos dizer, sem exageros que eram centenas e de todas as idades, inclusive pequenos filhotes correndo ao lado dos adultos. Ficamos imobilizados, observando aquela tropa que parecia seguir um líder.
Um churrasco inusitado e um dos grandes presentes da viagem
Em um dos dias de estadia, a pousada tinha programado um churrasco campestre, que seria feito em uma fazenda pertente aos proprietários da hospedagem. O transporte da até o local do churrasco foi feito com um caminhão e nós e os demais hospedes fomos na carroceria em assentos improvisados.
Como sempre, o calor era grande. Como a carroceria era descoberta, fomos tomando sol e poeira até o destino do churrasco. Nossa maior preocupação era o estrago que a poeira poderia trazer aos equipamentos fotográficos. Após uns 40 minutos, chegamos ao local que tinha uma vegetação rala, com altura que variava de um a dois metros – vegetação típica da região. Enquanto parte do pessoal foi empilhando alguns blocos de construção para colocar uma grelha em cima, improvisando uma churrasqueira, outra pessoa nos apresentou o banheiro.
O acesso ao banheiro era feito por uma trilha que levava até um buraco no chão, que serviria de vaso sanitário. Esse buraco no chão era parcialmente cercado com troncos finos de árvores, fazendo uma barreira visual – afinal a privacidade nessas horas é tudo. Em um determinado galho na trilha, antes de se chegar ao banheiro, estaria o rolo de papel higiênico. Se o rolo não estivesse no local, significava que alguém estaria usando o banheiro e, nesse caso, deveríamos esperar no local. Se o rolo de papel estivesse lá, significava que o banheiro estava livre – deveríamos pegá-lo e seguir em frente. Simples assim.
Não preciso dizer que esse banheiro não tinha porta, não tinha descarga e nem tão pouco água para lavar as mãos.
O fogo foi aceso e as carnes e linguiças foram colocadas na churrasqueira. Em poucos minutos, percebemos a visita de um cachorro-do-mato atraído pelo cheiro típico de churrasco. Dava para observar pelo seu olhar que ele devia já estar há um bom tempo sem uma boa refeição. Ele ficou na espreita, à distância, nos olhando com aquele olhar de pidão que ninguém resiste. Para sua alegria, jogamos alguns pedaços de carne e ossos que foram mastigados e engolidos, mas sempre com o olhar desconfiado e atento ao que acontecia a sua volta.
Chegou a nossa vez de comer o churrasco. Nem bem tínhamos iniciado a refeição nosso guia Roberto chegou correndo e nos disse em voz baixa e ofegante: “larguem tudo, larguem tudo. Peguem a máquina, rápido!”. Sem saber o que nos esperava, largamos nossos pratos e saímos em disparada com nossas máquinas fotográficas.
Há uns 50 metros do local, nos deparamos com um dos pássaros mais lindos de nossa fauna: o uirapuru-laranja. Ele estava junto com um soldadinho, também muito lindo e, para nossa alegria, ficaram saltitando num raio de dez metros durante quase uma hora. Eram muito amistosos, pousavam em galhos no limpo, bem baixo e parecia que estavam fazendo poses para nós. Cada um tirou mais de 300 fotos dessas belezinhas – fotos lindas! Quando voltamos, já tínhamos perdido o almoço, mas nossa felicidade era indescritível – estávamos muito mais contentes que aqueles que tinham almoçado. No ano seguinte, para nossa satisfação, uma de nossas fotos do uirapuru-laranja foi escolhida para ser a capa de um trabalho de educação ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio): Um novo olhar – Aves.
Que esse bioma não seja conhecido apenas pelos livros
Foram dias de caminhadas sob sol escaldante, registrando aves, animais e a natureza durante o dia e fazendo o inventário e a identificação dos animais fotografados à noite, após o jantar.
Após termos vivenciado tantos bons momentos no Pantanal, termos conhecido o pessoal que lá trabalha e se esforça muito para ter uma vida modesta e após termos visto tantos animais e aves, uma imensa tristeza invade nossa alma ao ver que grande parte desse paraíso foi, e ainda está sendo, consumido pelas chamas. O sofrimento dos moradores, dos animais e das aves nesse inferno de chamas não pode ser tratado como algo normal.
A ausência de reais ações e as tentativas de justificar o injustificável farão que esse bioma talvez seja conhecido apenas por artigos, livros, filmes e novelas em um futuro não muito distante.
– Leia outros artigos da coluna OBSERVAÇÃO DE AVES
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)