
Por Elisângela de Albuquerque Sobreira
Médica Veterinária e mestre em Ecologia e Evolução pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutoranda em Animais Selvagens pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/Botucatu). Já foi Gerente do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Anáplois (GO), onde fundou e mantém o Centro Voluntário de Reabilitação de Animais Selvagens (CEVAS)
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A caça profissional e esportiva de animais selvagens foi proibida no Brasil há mais de 50 anos, mas o projeto de lei 6.268/2016, do deputado federal Valdir Collato (MDB-SC), pretende liberar a atividade. O PL altera o Código de Caça de 1967, que proíbe a caça de animais selvagens em todo o território nacional, salvo em caso de autorização expressa do governo federal por meio de seus órgãos ambientais. Esse projeto não apenas causa risco ambiental nos aspectos de proteção à biodiversidade e na luta pelo reconhecimento dos direitos dos animais, mas também risco à saúde pública.
Infelizmente, a tradição de se comer carne de animais selvagens ainda existe no Brasil. No entanto, é importante estar ciente dos riscos relacionados à saúde que podem ser associados à ingestão de carnes de animais selvagens devido a exposição ao chumbo. As balas de alta velocidade podem deixar pequenos fragmentos do metal na carne, mesmo depois de ser processado. Estes pedaços são, geralmente, demasiado pequenos para serem observados. As crianças e as mulheres grávidas correm mais risco nesse tipo de exposição ao chumbo.
Outro problema bastante perigoso a saúde devido a ingestão de carne de caça está relacionado a transmissões de zoonoses (doenças passadas de animais a seres humanos), o que pode acarretar em morte dependendo da idade e da resistência imunológica.
Recentemente, dezenas de pessoas no Piauí contraíram micose pulmonar ao tentar capturar tatu, tendo assim contato com o fungo presente no solo próximo à toca do animal. Três dessas pessoas morreram e duas pessoas estão na UTI em tratamento. O costume de consumir carne de caça não é exclusivo da região Nordeste. Em todo o Brasil, pessoas comem esse tipo de carne, mas não imaginam os riscos a que estão se submetendo. O tatu, por exemplo, é reservatório de inúmeras doenças, entre elas hanseníase, leishmaniose e doença de chagas. E o risco não está somente em comer a carne do animal, mas também nos atos de caçar ou criar o bicho.
Pesquisadores portugueses alertam para os riscos de saúde pública na caça aos javalis, considerados reservatórios potenciais das bactérias responsáveis pela doença de Lyme, que causa fadiga generalizada, dores de cabeça, dores musculares, febre ou até paralisia facial, entre outros sintomas. Esse alerta foi resultado da detecção em javalis, pela primeira vez a nível mundial, dessas bactérias por uma equipe do Centro de Investigação e de Tecnologias Agroambientais e Biológicas (CITAB – UTAD), e do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), da Universidade Nova de Lisboa. Dados da Organização Mundial da Saúde e do Centro Europeu para a Prevenção e Controle das Doenças indicam que, nos últimos 20 anos, foram detectados na Europa mais de 360 mil casos da doença de Lyme (ou borreliose de Lyme), que afeta o sistema nervoso central, entre outros sistemas e órgãos, com sintomas semelhantes aos da esclerose múltipla e até da fibromialgia.
A caça para subsistência se configura como uma atividade comum entre as comunidades rurais do Amazonas, como forma de suprir as necessidades protéicas das populações. Segundo a literatura, 60% das doenças que ocorrem em seres humanos são zoonoses e 71% dessas doenças são oriundas de animais selvagens. A ausência de inspeção sanitária e de equipamentos de proteção individual pelas pessoas que participam da atividade aumentam o risco de contágio. Em amostras biológicas de duas pacas para pesquisa de patógenos analisadas em laboratório detectou-se cistos hidáticos no fígado, o que significa que apresentavam a forma larval de verme do grupo das tênias. Em outras amostras, de um cateto, foram verificados ovos característicos de Capillaria hepática, outro verme parasitário. E a avaliação sorológica de uma anta indicou o contato desse animal com os agentes causadores de leptospirose e toxoplasmose.
Os resultados obtidos indicam que os fatores de risco estão também associados ao contato com o sangue, urina e secreções durante os processos de evisceração e limpeza, além do consumo de carnes de caça.
Acredita-se que a origem do corrente surto de ébola esteve em carne de animais selvagens. A primeira família vítima da doença caçou morcegos para se alimentar e esses animais transportam o vírus. Uma ideia, por isso, torna-se pertinente: a prática de comer carne de animais selvagens, popular em toda a África, pode ser responsável pela crise atual. Os animais em causa, cuja carne é consumida, são sobretudo chimpanzés, gorilas, morcegos e macacos. Podem incluir também porcos, ratos e cobras. Em algumas áreas remotas, eles são fontes necessárias de alimentos; noutras, tornaram-se uma iguaria.
Na Bacia do Congo, por exemplo, comem-se cerca de cinco milhões de toneladas de carne de animais selvagens por ano, de acordo com o Centro de Pesquisa Florestal Internacional. Mas alguns desses animais podem transportar doenças mortais para os humanos. E os morcegos não morrem com o ébola – o que faz deles os “hospedeiros ideais” do vírus. Podem transmiti-lo aos humanos que os caçam e preparam, ou a primatas, como gorilas e chimpanzés. A maioria dos consumidores compra essa carne nos mercados já cozida e aí o risco desaparece. Mas quem caça os animais ou prepara a carne ainda crua está exposto aos riscos.
É necessário que a sociedade fique atenta, pois o discurso do projeto de lei leva muitas pessoas a acreditarem que liberar a caça irá resolver inúmeros problemas, enquanto, na verdade, criará uma série de impactos negativos no meio ambiente e à saúde pública. A carne dos animais selvagens abatidos será consumida sem qualquer inspeção sanitária e a liberação da caça irá abrir um mercado clandestino do comércio de carnes que poderá ocasionar o ressurgimento de doenças já consideradas sob controle.