Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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A bacia Amazônica, localizada no norte da América do Sul, drena uma área de aproximadamente 6,3 milhões de km2, equivalente a 35,5% do continente sul-americano. Possui 25 mil quilômetros de vias navegáveis, desde sua nascente nos Andes até sua desembocadura no oceano Atlântico. Sua área abrange a Bolívia, o Brasil, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Venezuela. E é nesse vasto oceano de água-doce que vive o grupo de animais conhecidos como mamíferos aquáticos da Amazônia.
Nesse grupo, temos os golfinhos fluviais – o boto-vermelho ou boto-cor-de-rosa (Inia spp) e o boto-tucuxi ou tucuxi (Sotalia fluviatilis) -, o peixe-boi-da-Amazônia (Trichechus inunguis) e as duas espécies de lontras: a ariranha (Pteronura brasiliensis) e a lontrinha (Lontra longicaudis).
Todas essas espécies são consideradas chaves no funcionamento do ecossistema aquático amazônico e, por viverem próximas ao homem, são as mais vulneráveis e sofrem intenso impacto antropogênico (causados pela ação humana).
Aqui no Fauna News, vou abordar separadamente cada um desses mamíferos aquáticos e suas relações com os homens, as lendas que os cercam e os conceitos culturais quando existentes, incluindo conflitos e ameaças passados e presentes.
O boto-vermelho e o boto-tucuxi são os únicos golfinhos fluviais do Novo Mundo. Eles pertencem à mesma ordem das baleias e dos golfinhos marinhos (Cetartiodactyla), que são bem mais conhecidos, e à subordem dos Odontocetos, que reúne os cetáceos com dentes. Esses golfinhos fluviais são amplamente distribuídos nos rios e lagos da região Amazônica.
Vou iniciar esta série de artigos sobre esses fascinantes animais com o boto-vermelho, o piraiá-guará ou Uauiará, o “protetor dos peixes” e protagonista de muitas lendas e histórias.
O boto-vermelho (Inia geoffrensis)
O boto-vermelho ou boto, como vamos chamá-lo, é o maior de todos os golfinhos de rio do mundo. O macho adulto pode medir aproximadamente 2,5 metros e pesar cerca de 200 quilos. A fêmea é bem menor, caracterizando o que denominamos de dimorfismo sexual (possibilidade de diferenciar macho e fêmea pela aparência). Animais da espécie habitam os rios da bacia Amazônica desde a sua formação, durante o Médio Mioceno, cerca de 10-12 milhões de anos atrás.
Nessa longa existência, o boto conviveu com as mudanças geomorfológicas e hidrológicas que ocorreram na região. Sofreu diversas adaptações morfológicas e fisiológicas, o que permitiu também que explorasse com sucesso os diferentes ambientes aquáticos desse vasto bioma, tais como várzeas, igapós, paranãs, enseadas e ressacas, rasos ou profundos, a procura de alimento e proteção.
O boto é um animal que se alimenta essencialmente de peixes. Por isso, desde que o homem começou a usar petrechos de pesca, criou-se o conflito entre o pescador e o golfinho, ambos em busca do mesmo recurso alimentar: o peixe.
Durante muito tempo, o boto foi protegido por lendas e superstições que o apontam como um ser mágico e encantado. Quando encontrado ainda vivo emalhado nas redes de pesca, era solto pelo pescador que não queria ficar panema, ou seja, ter má sorte na pesca ao matá-lo. Com o passar do tempo, no entanto, o aumento das populações humanas na região, a maior demanda pelo pescado e o advento do náilon na confecção das redes de pesca intensificaram a interação dos golfinhos com a pesca. Os pescadores, para protegerem seus petrechos de pesca e a integridade do pescado, passaram a matar os animais emalhados. Aqueles que rodeavam a rede a espera de oportunidade para roubar o peixe emalhado eram mortos por armas de fogo, com peixes envenenados ou explosivos.
Muitos pescadores afirmam que os golfinhos rasgam as redes quando roubam os peixes, causando estragos e prejuízos. Esse comportamento provoca a rejeição ao boto-vermelho, causando a morte do animal. Em alguns locais, felizmente, os botos ainda são considerados amigos e colaboradores. No baixo rio Negro, próximo a Manaus, esses carismáticos animais interagem com os humanos e são usados como atração turística, assunto que tratarei em outro momento.
No próximo artigo sobre o boto, a ser publicado em 26 de junho, abordarei as ameaças à sobrevivência desses animais, com destaque ao problema envolvendo a pesca da piracatinga.
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