Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Todo mundo se interessa por bicho. Desde os primórdios de nossa espécie – e muito provavelmente isso também ocorreu com os demais integrantes do gênero Homo (Primates: Hominidae) –, os outros animais são foco da atenção do Homo sapiens. Para nossos antepassados, observar os bichos era questão de sobrevivência. Afinal, era necessário saber de que animais eles precisariam fugir, quais eles poderiam caçar, em que época os bandos estariam naquele determinado local, quais seriam seus comportamentos. Algumas dessas observações biológicas acabaram virando arte, retratadas nas famosas pinturas rupestres, que encantam e emocionam os descendentes daquele pessoal talentoso, guerreiro e comunicativo que as pintou.
Os outros integrantes do reino animal nos causam um tremendo fascínio. Muitos de nós gostam, outros nem tanto, mas ninguém é indiferente às peripécias e encantos dos bichos. E fazemos questão de demonstrar isso, lotando de referências zoológicas praticamente todas as nossas manifestações. Simbolicamente falando, os animais estão por toda parte, o que constitui a base de estudo da Zoologia Cultural, que propõe formas de utilizar isso para o ensino, a divulgação científica e a popularização das práticas de preservação ambiental [1] [2].
Ao acompanhar o noticiário pela TV ou outros veículos, qualquer brasileiro com o mínimo de sensibilidade fica preocupado com as queimadas que assolam o país, especialmente no Pantanal e no Cerrado. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) divulgou dados que mostram que, em 2019, o Brasil viveu a maior onda de queimadas dos últimos cinco anos [3] e o panorama piorou bastante em 2020. Neste ano, a situação está fora de controle, em que pese a ação heroica de brigadistas e voluntários. Todos aqueles que acompanham, in loco ou à distância, se compadecem, com toda a razão, da situação dos grandes animais, como as onças-pintadas (Panthera onca – Carnivora: Felidae), na luta para escapar das chamas, infelizmente muitas vezes em vão. Um drama terrível, provavelmente criminoso, pelo qual a natureza não deveria ter que passar.
Se há um ponto positivo nessa tragédia é o fato de, finalmente, os animais da fauna brasileira estarem ganhando espaço na grande mídia. Isso pode começar a mudar uma triste realidade: o brasileiro não conhece a nossa biodiversidade.
O fato é que as espécies de grande porte e consideradas bonitas, notadamente os mamíferos, grupo zoológico no qual estamos inseridos, causam mais empatia e chamam bastante atenção. Além dos mamíferos, as multicoloridas aves e até alguns répteis, como as tartarugas-marinhas, costumam despertar interesse no público externo à academia científica – e é perfeitamente natural que isso aconteça. Muitos desses campeões de popularidade são fofinhos, fazendo com que sejam chamados coletivamente de “fofofauna” [4], termo muitas vezes usado de modo pejorativo, especialmente por parte dos especialistas em grupos zoológicos não tão carismáticos.
Provavelmente surgido com base nessa aceitação popular, o conceito de espécie-bandeira defende que se chame a atenção da população para a situação de perigo de determinada espécie, mais carismática, a fim de que todo o ecossistema ao seu redor (incluindo as demais espécies, menos carismáticas) tenha mais chance de ser preservado [5]. A espécie-bandeira é uma facilitadora dos processos de sensibilização em atividades de educação ambiental [6]. O processo de utilização de uma espécie-bandeira pode resultar no aumento da participação efetiva da população local na causa conservacionista, além de aumentar a atratividade do produto turístico da região. Assim, para a escolha da espécie a ser representada, pode ser também considerada a importância social, cultural e econômica. Espécies-bandeira podem agregar valor econômico-ambiental quando usadas como símbolos e propaganda na localidade turística [7].
A já citada onça-pintada, um predador extraordinário, o maior felino das Américas, se encaixa perfeitamente no conceito de espécie-bandeira, uma estratégia que já trouxe inúmeros benefícios à conservação da biodiversidade. Em um ponto, porém, há que se fazer uma ressalva. Quase todos os animais usados como espécie-bandeira são bonitos, medida óbvia por se tratar de uma busca por respaldo popular. Porém, há que se ter cuidado para não fixar na população a ideia de que só se deve preservar o que é bonito, por si só um conceito pessoal, subjetivo e fluido. Uma breve olhada na seção de comentários de notícias que envolvem animais pouco populares mostra que isso pode acontecer.
Conservacionistas devem tratar com muita delicadeza o assunto e mostrar o papel que os animais “feios” desempenham nos processos naturais pode ser uma boa opção. Mas sem cair na armadilha do utilitarismo, que tantos problemas pode trazer à causa conservacionistas. Ou seja, o que tem que se fazer é a boa, velha e (cada vez mais) necessária divulgação científica.
Os animais vítimas dessa “ditadura da beleza” costumam ser os atores de sempre: tubarões, morcegos, anfíbios, répteis, aracnídeos e insetos, exatamente aqueles que são frequentemente vilanizados nos filmes, desenhos animados e séries de TV [8] [9]. A realidade é que, no que se refere à tragédia das queimadas sem controle no Brasil, existem duas faces. Uma visível, cruel e terrível, representada pelas onças-pintadas, antas, tamanduás-bandeira e outros bichos carismáticos queimados, mutilados, assassinados e, felizmente, eventualmente resgatados e tratados, graças à ação de heróis. Outra, invisível, mas igualmente cruel, em que um sem-número de organismos são anonimamente ceifados pelas chamas – anfíbios, répteis, vermes, caramujos, aracnídeos e insetos… Muitos insetos. E, o que eleva a tragédia das queimadas ao status de dano científico, certamente perecem queimados representantes de espécies ainda não formalmente descritas e catalogadas.
Na Amazônia, as queimadas de 2019 foram bem documentadas pela imprensa, sendo muitos os relatos colhidos de bravos brigadistas, que testemunharam a morte maciça de abelhas, gafanhotos e outros insetos que, muitas vezes, voavam diretamente para as chamas. Isso colocou os insetos entre os animais mais vulneráveis em situação de queimada [10]. Evidentemente, aos insetos voadores sempre há alguma possibilidade de escape, por sua maior mobilidade, o que pode representar uma chance de busca de refúgio em áreas adjacentes [11]. Mas, em casos como o dos gigantescos incêndios ambientais registrados em 2020, essa chance é quase nula. Se já é terrível a situação dos insetos voadores, ainda mais desesperadora é a dos que ocorrem nos solos, hábitat que abriga imensa riqueza de formas. Os insetos de solo, em caso de incêndio, são eliminados conforme o fogo passa, consumidos pelo calor. Como a entomofauna de solo é fundamental nos processos biológicos, o dano ambiental é incalculável [3].
A situação se agrava pois há estudos que mostram que as populações de insetos já vêm, há algum tempo, apresentando declínios. A associação entre o fenômeno climático El Niño e as queimadas descontroladas no Brasil vem resultando em significativo decréscimo populacional de algumas espécies de besouros, o que compromete os serviços biológicos prestados por eles [12]. Isso provavelmente ocorre também com outros grupos de insetos, a ponto de os especialistas estarem alertando para a possibilidade efetiva de um colapso global na abundância dos insetos [13].
Grupo de maior diversidade no planeta, os insetos dão margem para que ainda se tenha algum otimismo. Muitas populações, especialmente as que ocorrem em ecossistemas ou habitat onde as queimadas são frequentes, apresentam estratégias que facilitam a sobrevivência nessas condições ou até a recolonização pós queimada, especialmente se tiverem refúgios nas proximidades [14]. Sim, se há um grupo capaz de sobreviver aos fenômenos naturais e aos estragos provocados ou potencializados pelo bicho-homem, é o dos insetos. Afinal, como bem diz a sabedoria popular, “a esperança é a última que morre”. Ainda bem.
Referências
[1] Da-Silva, E.R. & Coelho, L.B.N. 2015. Zoologia Cultural, com ênfase na presença de personagens inspirados em artrópodes na cultura pop. In Da-Silva, E.R. et al. (ed.). Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, p. 24-34.
[2] Da-Silva, E.R. 2018. Retrospectiva 2018: o ano de consolidação da Biologia Cultural – e jamais isso foi tão necessário. A Bruxa 2(6): 1-8.
[4] Pereira, A.D. 2019. A “fofofauna” esconde perigos: mamíferos invasores no Brasil. Revista Bioika 4: 1-5.
[5] https://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/28190-o-que-e-uma-especie-bandeira/
[6] Buss, G. et al. 2007. A abordagem de espécie-bandeira na Educação Ambiental: estudo de caso do bugio-ruivo (Alouatta guariba) e o Programa Macacos Urbanos. DOI: 10.13140/2.1.3693.7928.
[7] https://www.anptur.org.br/anais/anais/files/5/28.pdf.
[9] Castanheira, P.S. et al. Analyzing the 7th Art – Arthropods in movies and series. Vignettes of Research 3(1): 1-15.
[11] Frizzo, T.L.M. 2011. Revisão dos efeitos do fogo sobre a fauna de formações savânicas do Brasil. Oecologia Australis 15(2): 365-379.
[13] https://news.mongabay.com/2019/06/the-great-insect-dying-a-global-look-at-adeepening-crisis/
[14] Diniz, I.R. & Morais, H.C. 2008. Efeito do fogo na abundância de insetos do Cerrado: o que sabemos? Heringeriana 2(1): 39-46.
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