Por Elisa Ilha
Bióloga, mestra em Biologia Animal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Sistemática e Ecologia de Aves e Mamíferos Marinhos (Labsmar/UFRGS) e do Projeto Botos da Barra (Ceclimar/UFRGS)
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No mês de junho de 2022, o boto-de-Lahille (Tursiops gephyreus) – conhecido, também, como boto-da-tainha ou boto-da-barra – entrou oficialmente na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção.
O boto-de-Lahille foi classificado como Em Perigo, o que significa que a espécie está enfrentando um risco muito alto de extinção na natureza. Esse mamífero é uma das dez espécies de cetáceos (baleias, botos e golfinhos) incluídas em categorias de ameaça no Brasil.
Por viver em águas costeiras, próximas à zona de arrebentação, em baías costeiras e em águas adjacentes de estuários e lagoas costeiras, o boto-de-Lahille é particularmente suscetível aos impactos antrópicos que o colocam em risco. Além disso, a espécie ocorre exclusivamente no oceano Atlântico Sul Ocidental, em uma faixa de distribuição de aproximadamente 3.500 quilômetros, entre os três estados do Sul do Brasil, o Uruguai e uma parte da Argentina (até a província de Chubut).
Em 2019, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) classificou o boto-de-Lahille como vulnerável (VU) à ameaça de extinção. A justificativa foi a distribuição restrita e tão próxima às regiões costeiras, junto ao pequeno tamanho populacional estimado para a espécie (600 indivíduos, sendo apenas 360 maduros) e uma tendência populacional decrescente.
No Brasil, o boto-de-Lahille avançou, portanto, para uma categoria de ameaça ainda mais preocupante em relação ao seu risco de extinção. Em águas marinhas costeiras, o tráfego de embarcações, a captura acidental em redes de pesca, a poluição sonora, química e residual e o esgotamento das suas presas põem em risco a sua sobrevivência.
Sua proximidade com a costa também faz com que enfrentem os impactos da vida urbana. As populações mais conhecidas dos botos-de-Lahille são residentes em estuários e lagoas costeiras muito próximas de cidades que crescem rapidamente como Rio Grande, Tramandaí e Imbé (no Rio Grande do Sul) e Laguna (em Santa Catarina).
A maior população dos botos-de-Lahille tem aproximadamente 90 indivíduos e está na lagoa dos Patos (Rio Grande) e em águas adjacentes. Segundo pesquisadores, da média de doze mortes registradas por ano, cinco estão relacionadas a capturas acidentais em redes de pesca e iniciativas entre diferentes atores locais buscam encontrar soluções para o problema.
Já no estuário de Laguna, é estimada uma população de 60 indivíduos, mas pescadores artesanais que realizam a pesca artesanal com auxílio dos botos, relatam que a população de botos foi reduzida pela metade nos últimos anos. A poluição química e residual das águas, a presença de embarcações motorizadas e esportivas (como jet-skis e lanchas) e a pesca ilegal no estuário de Laguna são as maiores ameaças identificadas.
Na barra do rio Tramandaí (Tramandaí/Imbé), por sua vez, a população de botos-de-Lahille é menor, com cerca de 13 indivíduos. Esse número de indivíduos se mantem mais ou menos o mesmo desde a década de 90, através de uma família de linhagem matriarcal bastante conhecida. Essa população também aprendeu entre gerações a colaborar com os pescadores artesanais de tarrafa. Há alguns anos, a criação de duas leis municipais passou a regular a presença de jet-skis e lanchas no canal do estuário, após esses veículos serem identificados como uma ameaça direta para os botos-de-Lahille.
No entanto, atualmente, os maiores riscos que essa população enfrenta são a perda e a degradação desse ambiente estuarino, que divide as duas cidades. Esses riscos são intensificados pelo projeto de construção de uma ponte rodoviária sobre o canal do estuário. O empreendimento poderá ampliar a vibração e o ruído ambiental, interferindo diretamente nas estratégias de comunicação, alimentação e sobrevivência dos botos – que são realizadas através do som. Também poderá interferir na disponibilidade de presas (por colocar em risco a dinâmica de um canal fundamental para o ciclo de reprodução da tainha) e na saúde do ecossistema pela urbanização desordenada do entorno, pelo aumento da poluição e do tráfego de automóveis pesados.
A inclusão do boto-de-Lahille em ambas as “listas vermelhas” buscou reconhecê-lo normativamente como uma espécie ameaçada, para que possam ser discutidas e desenhadas ações estratégicas para protegê-lo, ou seja, para garantir que sigam existindo entre as futuras gerações. Isso deveria garantir, ainda, a conservação dos ambientes que sustentam as comunidades bióticas às quais essas espécies fazem parte.
Para que isso possa ser verdade, entretanto, é fundamental que ocorra a integração dos conhecimentos, dos esforços e do trabalho de inúmeras pessoas. Conservação não é uma tarefa fácil, muito menos uma tarefa que se possa fazer sozinho. Ela começa, muitas vezes, com pesquisas e levantamentos de dados científicos; é fortalecida pelos conhecimentos empíricos que potenciam as formas de organização, gestão e manejo; e deve ser valorizada pelo diálogo e comunicação dos saberes junto à sociedade.
Assim, para criar entornos normativos favoráveis à conservação das espécies, é preciso que as decisões e as políticas públicas se apoiem em dados científicos e que os conhecimentos tradicionais passem também a ser incluídos. Entretanto, para que instrumentos regulatórios sejam efetivos, é preciso que o poder público e os tomadores de decisões façam a sua parte. Ou seja, que estejam dispostos ao diálogo, ao cumprimento das leis e das fiscalizações; que assumam uma postura proativa na responsabilidade de buscar soluções mais sustentáveis para cidades; e que entendam, por fim, que não existirá nem futuro e nem desenvolvimento sem garantir uma efetiva conservação da sociobiodiversidade.
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