
Bióloga, mestra em Biodiversidade em Unidades de Conservação e guia de observação de aves da Brazil Birding Experts pelo Sudeste e Nordeste do Brasil
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Quando falamos de turismo de natureza, logo pensamos naqueles lugares consagrados como destinos, com praias paradisíacas, lindas montanhas com cachoeiras e muitos locais que fazem parte de parques nacionais com notável beleza cênica. Mas, para o turista observador de aves as coisas funcionam um pouco diferente. O observador de aves, primariamente, está atrás das aves e não de belas paisagens (é claro que se puder conciliar as duas coisas melhor ainda!). É assim que a observação de aves revela novos destinos e coloca cidades pouco conhecidas no mapa do turismo internacional. Municípios que não são considerados destinos turísticos ou que apenas recebem turismo de negócios ou regional passam a receber pessoas de todo o Brasil e de outros países. São tantas as cidades que já conheci porque as aves as apresentaram a mim e, certamente se não fosse pelas aves, eu não teria ido a diversos locais.
Quando paramos para pensar o que essas cidades têm em comum, nos damos conta que são as aves! Sim, as aves são o atrativo natural. Esses locais são a casa de aves de distribuição restrita (que ocorrem em uma determinada região) e de aves raras de serem encontradas ou então oferecem a facilidade de ver e/ou fotografar aves difíceis de serem visualizadas. Temos diversos exemplos desses espalhados pelo Brasil, mas resolvi destacar aqui alguns casos interessantes para ilustrar como a observação de aves vem revelando destinos turísticos em nosso país.
Um belo exemplo é a cidade de Potengi, localizada na porção sul do estado do Ceará, em parte da microrregião da Chapada do Araripe. É um pequeno município, onde o biólogo Jefferson Bob e sua mãe, Ivete Guedes, criaram o Sítio Pau Preto. Graças a sua atuação, a realidade da cidade com relação ao turismo foi transformada. “Potengi é uma cidade pequena no interior do Ceará, que provavelmente não ia aparecer em rotas turísticas, por onde não passariam pessoas interessadas em turismo, especialmente de natureza. Com o hobby que eu tinha de observar aves, comecei a fazer fotos, gravações e a convidar as pessoas para vir pra cá. E, por conta de o soldadinho-do-araripe estar aqui perto, em Barbalha, muitas pessoas começaram a desviar a rota e passar por aqui. Principalmente para ver as aves de Caatinga, como o piu-piu (Myrmorchilus strigilatus), alegrinho-balança-rabo (Stigmatura budytoides), papa-moscas-do-sertão (Stigmatura napensis) entre outros que são fáceis de encontrar por aqui. Por isso, nós sentimos a necessidade de estruturar e adaptar o sítio para receber e hospedar as pessoas lá. E hoje, Potengi é visto como um ponto de referência para observação de aves para agências de vários lugares do mundo que tem o município como parte do seu roteiro. Isso é muito bom e fez uma mega transformação na cidade, na própria ideia da conservação, de como é importante cuidar da natureza. Agora a natureza traz renda para as pessoas e isso é muito bom.” relatou Jefferson Bob.

O Sítio Pau Preto, que fica na zona rural de Potengi, tem um dos primeiros comedouros para aves da Caatinga com excelentes oportunidades para fotografia. Além de receber turistas de várias partes do Brasil, o local também recebe visitantes do mundo inteiro. E todas essas pessoas vão até lá para observar aves.
Ivete Guedes, proprietária do Sítio Pau Preto, fala lindamente sobre o seu encontro com a observação de aves: “Foi uma mudança radical na minha vida, porque eu vivia em outro mundo. Eu tenho muita gratidão de conviver com várias culturas e com vocês guias que passam segurança pra nós. Também com relação a parte financeira, estávamos em um momento sem saber o que fazer na vida e Bob, com esse conhecimento, me levou a trabalhar com isso e foi uma mudança muito grande na nossa vida financeira. Agora na pandemia estamos encontrando dificuldades, mas quando estamos trabalhando, a gente ganha e dá para viver uma vida tranquila.”

A observação de aves tem o poder de transformar a realidade de uma comunidade inteira. Da mesma forma que é um turismo de baixo impacto, esse trabalho com a natureza pode ser de grande impacto econômico para as comunidades (nas suas devidas proporções). Podemos ver claramente os benefícios que a atividade leva para pequenas comunidades através de diversos relatos como o da Francisquinha (responsável pela limpeza do sítio e que também prestava serviço para os hóspedes lavando roupas), que me emocionou durante as minhas visitas ao Sítio Pau Preto:
“Me ajudou muito, sempre que faço orações eu entrego vocês (guias) a Deus porque eu vivia devendo nas bodegas. Comprava por 30 dias, pagava e já ficava devendo pro próximo mês de novo. Eu pedia tanto a Deus e Deus mostrou essa forma, de vocês terem vindo aqui para o nosso sítio. Agradeço demais a Ivete por ter me chamado para ajudá-la. Vocês me ajudaram, ela me ajudou. Foi muito bom, muito bom mesmo! Sempre peço a Deus para abençoar vocês. Me sinto hoje uma pessoa realizada. Não devo, estou trabalhando, faço meus bicos, pude comprar alguns produtos pra vender.”
As aves também levaram dois municípios do interior de Pernambuco para a “boca do povo” internacionalmente. Tudo isso porque abrigam um dos últimos remanescentes significativos da Mata Atlântica do Centro de Endemismo Pernambuco (CEP – porção de Mata Atlântica ao norte do rio São Francisco), a serra do Urubu. Felizmente, hoje essa área é protegida por duas reservas particulares do patrimônio natural (RPPNs), a RPPN Pedra D’Antas e a RPPN Frei Caneca, localizadas nos municípios de Lagoa dos Gatos e Jaqueira, respectivamente, onde a ong SAVE Brasil realiza um importante projeto de conservação desde 2004. A importância da serra do Urubu, tanto para a conservação quanto para o turismo, se deve a sua biodiversidade única, especialmente por abrigar diversas espécies de aves ameaçadas e endêmicas do CEP. Uma delas foi o que mais atraiu os observadores de aves para a região e motivou os esforços para a conservação; o limpa-folha-do-nordeste (Philydor novaesi). Essa era a última localidade onde ainda podíamos observar a espécie.
No entanto, em 2011, foi a última vez que a ave foi registrada, sendo considerada extinta pela lista brasileira da fauna ameaçada de extinção. Junto com os observadores de aves e pesquisadores, chegou muito conhecimento para a região como nos conta José Antônio Vicente, mais conhecido como Zezito, o grande guardião dessa floresta: “Minha vida inteira foi trabalhar com mato. No início, trabalhava com pesquisadores de Botânica e depois comecei a acompanhar ornitólogos. Jamais imaginei que iria trabalhar com estrangeiros. Mudou muito minha rotina e minha vida, minha vivência. Fora do Brasil me conhecem mais do aqui, por causa da reserva e dos passarinhos. O pessoal me conhece mais do que o povo da minha cidade. Jamais pensei que um dia eu seria um guia. Os estrangeiros me parabenizam pelo meu trabalho. Jamais imaginei isso, de conhecer tanta gente de fora do Brasil. Na época que compraram essa mata (RPPN Pedra Dantas), por causa do limpa-folha-do-nordeste, eu passei a trabalhar na reserva. Trabalho em uma ong bem reconhecida, a SAVE Brasil. Tenho que agradecer aos passarinhos e aos ornitólogos por me ensinarem muitas coisas. Eu só conhecia plantas, anfíbios e répteis e, através da SAVE e dos ornitólogos que vieram, eu aprendi muito e fiquei conhecido.”

Hoje, a RPPN Pedra D’Antas conta com uma torre e um jardim de beija-flores que são ótimos locais para observar uma variedade de aves endêmicas do Centro Pernambuco e, também, para fazer boas fotos. Se ainda não conhece a região, é um ótimo lugar para colocar na lista de locais para visitar assim que a pandemia passar.
E quando irmãos gêmeos se apaixonam pela a observação de aves e descobrem várias espécies interessantes na sua cidade? Esse é o caso do município de Pompeu em Minas Gerais, onde moram Luíz Alberto dos Santos e Afonso Carlos. Eles percorrem o município de bicicleta e descobrem cada preciosidade, além de terem criado excelentes oportunidades para ver e fotografar aves que quase não se conseguia ver, muito conhecidas entre os observadores de aves como “fantasmas do capim” (tanto do campo cerrado, quanto do brejo). Agora é possível ver e fotografar espécies como o maxalalagá (Micropygia schomburgkii), sanã-de-cara-ruiva (Laterallus xenopterus), sanã-do-capim (Laterallus exilis), entre muitas outras de Ralídeos. Além dessas espécies, em Pompeu são encontradas diversas aves típicas do Cerrado como o mineirinho (Charitospiza eucosma) e o andarilho (Geositta poeciloptera).
Por conta da paixão dos irmãos e por terem divulgado as aves da região, Pompeu tornou-se parada obrigatória para observadores de aves, tanto para o público internacional quanto nacional. “Nunca imaginamos que iríamos trabalhar com observação de aves. Nossa vida mudou completamente. Levamos o birdwatching não apenas como um hobby, mas como um estilo de vida. Acordar de madrugada para chegar cedo na mata e estar atento a qualquer som, nos trouxe uma ligação maior com a natureza e com nossa família. Conseguimos atrair meu irmãozinho, João Vitor, e como consequência minha mãe, Patrícia, que vai para acompanhar. Até meu padrasto, Fernando, mudou, soltou as aves que tinha em gaiola e começou a ajudar meu irmãozinho nas observações!” contaram Luiz e Afonso.

Botumirim, uma cidade pequenina no norte de Minas Gerais, mal sabia que de uma hora para outra teria a visita de observadores de aves do mundo inteiro. Em 2015, o ornitólogo Rafael Bessa, enquanto andava pela região fazendo um trabalho de consultoria, encontrou uma das maiores preciosidades da ornitologia mundial: a rolinha-do-planalto (Columbina cyanopis), uma das aves mais raras e ameaçadas do mundo (Criticamente Ameaçada). Logo após a descoberta, a SAVE Brasil iniciou um projeto de conservação e uma área foi comprada em Botumirim e transformada em reserva, que foi aberta para a visitação em 2018 (Reserva Natural Rolinha-do-planalto). São poucos os indivíduos conhecidos dessa espécie e, por estar tão ameaçada, todo cuidado é pouco. Por isso as visitas devem ser agendadas e são sempre acompanhadas por algum funcionário da SAVE Brasil.
Um deles é o senhor Osmane, morador de Botumirim, que nos contou como a descoberta da rolinha em Botumirim mudou sua vida: “Nunca achei que ia trabalhar com observação de aves. Eu adoro meu trabalho. Deus foi maravilhoso comigo. Agradeço meus companheiros de trabalho da SAVE Brasil. O mais maravilhoso é que estou ganhando mais experiência e encontramos mais um casal de rolinha-do-planalto. Antes eu trabalhava na roça; era sofrido. Agora mudou muito com esse emprego. Comecei como voluntário ajudando a SAVE. Eu tinha uma vida sofrida na lavoura e agora fui contratado. A dificuldade é para falar com os estrangeiros, mas os guias traduzem para a gente o que eles falam e aprendemos coisas importantes. Trouxe muitas coisas boas pra Botumirim!”

A descoberta dessa ave rara deu uma bela sacudida na cidade. Não foi só o seu Osmani que sentiu, mas também os meios de hospedagem, com as pequenas pousadas aumentando de tamanho. A dona Áurea Morais, proprietária da Pousada do Vale, uma grande admiradora da natureza, também contou sua experiência com as aves: “Há exatamente seis anos, quando se deu a descoberta da rolinha-do-planalto, fiquei muito empolgada. Embora já trabalhasse com hospedagem, não poderia imaginar que esse fato pudesse mudar completamente a minha vida. Comecei a vislumbrar o turismo da forma como sempre pensei. Um turismo não predatório, com respeito ao meio ambiente e puramente sustentável, capaz de mudar a nossa realidade. Hoje me vejo como protagonista de uma atividade econômica gerada por uma ave, bela e rara, em uma região até então esquecida. A observação de aves para as regiões marginais, como é o caso de Botumirim, tem sido fundamental para alavancar o turismo como possibilidade de desenvolvimento. Hoje, a Pousada do Vale é uma realidade, graças a dezenas de observadores que temos recebido das mais diversas nacionalidades.”
Quem viaja para observar aves percebe os impactos positivos que são gerados nas comunidades. É fundamental que nós, observadores, guias e operadores de turismo, façamos tudo o que pudermos para que a nossa atividade gere cada vez mais benefícios econômicos, sociais e ambientais. Todos sabemos o quanto a Covid-19 está impactando negativamente o setor turístico. Por consequência, muitas pessoas que trabalhavam exclusivamente com observação de aves tiveram que mudar os seus focos de trabalho. “Estamos voltando aos poucos a guiar, mas tivemos que arrumar outro serviço para ter como pagar as contas. Agora é esperar melhorar para voltar só para guiadas”, disseram Luíz e Afonso de Pompeu.
Aos poucos as atividades turísticas estão voltando a funcionar seguindo diversos protocolos de segurança, tanto do Ministério da Saúde quanto dos órgãos estaduais e municipais (fique atento aos protocolos da sua área de atuação!). “E é por acreditar nesta atividade que, mesmo diante desta crise que assolou o mundo e afetou principalmente o turismo de observação de aves, não deixei de acreditar. Pelo contrário. Aproveitei esse tempo para me qualificar e melhorar as condições de hospedagem da pousada. Sei que o retorno financeiro é fundamental para a sobrevivência de qualquer negócio, mas o maior retorno é a troca positiva de energia, a interação, a gratidão, o prazer da convivência. Isto é significante. É por isso que só tenho a agradecer e desejar que retorne rápido,”, salienta dona Áurea Morais
É isso aí, dona Áurea!. Daqui a pouco, estaremos todos juntos de novo, apreciando os passarinhos, os lugares, as pessoas e uma boa prosa. Estejamos todos atentos aos protocolos de segurança e bora passarinhar, quando for possível, por um turismo justo e que traga benefícios a todos os seres. Que venham muitos novos destinos de observação de aves, revelados por pessoas especiais, com aves incríveis do nosso país! Temos muito ainda para conhecer.
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