O tigre-dente-de-sabre do Brasil

A espécie foi descrita em 1842 a partir de fósseis encontrados em Lagoa Santa (MG).

Thiago Mariani

Licenciado e bacharel em Ciências Biológicas, mestre em Biologia Animal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).
Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira, usando particularmente morfologia comparada e morfometria em ossos do crânio e nas vértebras do pescoço. Gosta de estudar ossos dos fósseis, mas não deixa de olhar os ossos das espécies viventes; buscando sempre entender como as características ósseas estão conectadas com os hábitos de vida e evolutivos das espécies (e vice-versa).
É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da UFV, onde desenvolve suas pesquisas e participa da formação de recursos humanos. Também é colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional (MN).
Para variar, adora os filmes do Jurassic Park. É apreciador de café, basquete e metal – especialmente das bandas brasileiras (Sugestões? Só falar!).

20 de dezembro de 2024

FAUNA NEWS O tigre-dente-de-sabre do Brasil

Quando se fala em tigre-dente-de-sabre, pode-se imaginar de imediato um gato grande e musculoso, com dentes caninos longos a tal ponto de ficarem para fora da boca. Outro elemento que possa vir dessa imaginação é esse animal pulando ou atacando um animal muito grande, talvez uma preguiça-gigante ou um mamute. Ou quem saber, o personagem do filme A Era do Gelo. Da forma que vier, o animal tem sua fama, certamente. Esses animais foram muito espalhados pelas américas, na verdade, e uma espécie de tigre-dente-de-sabre foi muito comum aqui no Brasil durante os últimos ciclos glaciais.

Os tigres-dente-de-sabre são conhecidos por seus caninos muito compridos, que eram usados para caçar, sem dúvida, e por ter uma suposta aparência aterrorizante. Esses animais pertencem ao grupo Machairodontinae e são parentes distantes dos atuais felinos (dos grupos Felinae, como os gatos domésticos, pumas e guepardos, e Pantherinae, como as onças, leões e tigres). Uma das grandes diferenças com os felinos modernos está justamente nos caninos superiores. Os tigres-dente-de-sabre têm esses dentes mais achatados quando se olha de frente, lembrando a lâmina de uma faca ou de um sabre. Já os leões, tigres e companhia tem os mesmos dentes cônicos, arredondados.

Apesar de serem chamados de tigres-dente-de-sabre, nem todas as espécies tinham dentes bastante compridos. Os animais que, popularmente, são usados como referência na imaginação são espécies do gênero Smilodon, mas o nome – dente-de-sabre – é usado de forma mais ampla para se referir a outros gêneros extintos. As espécies do grupo (Machairodontinae, cujo sufixo -inae designa subfamília, isto é, uma linhagem dentro de uma família segundo a classificação dos seres vivos) possuem dentes com comprimentos diferentes e se espalharam bastante, desde o Mioceno até o Pleistoceno, pelos continentes africano, europeu e asiático, até chegarem às américas pela América do Norte.

O registro fóssil mostra que o crescimento dos caninos, tal como se vê no Smilodon, ocorreu mais de uma vez e em diferentes linhagens de dentes-de-sabre, sugerindo que podem ter existido pressões seletivas parecidas, ainda que em ambientes diferentes, como estratégias de caça similares. Vale lembrar que o período em que algumas das espécies com dentes compridos viveram foi marcada pela existência de uma megafauna bastante espalhada pelo planeta – diferentemente do que se encontra hoje, em que os animais de grande porte estão restritos à África.

O representante brasileiro

O tigre-dente-de-sabre brasileiro é o Smilodon populator. A espécie foi descrita em 1842 por Peter Lund, considerado o “pai da Paleontologia brasileira”, a partir de fósseis encontrados em Lagoa Santa (MG). Os fósseis dessa espécie são geralmente datados do final do Pleistoceno, entre 9 mil e 14 mil anos. No entanto, é provável que tenha surgido muitos milhares de anos antes e era bastante distribuída na América do Sul, com registros no Uruguai e na Argentina.

Nos anos seguintes, outras duas espécies foram descritas, Smilodon fatalis e Smilodon gracilis, ambas da América do Norte e mais antigas do que a espécie brasileira. A linhagem do Smilodon populator, então, não surgiu na América do Sul, mas derivou de outros macaritodontíneos que vieram da Ásia e chegaram à América do Norte. Ali, o gênero Smilodon se originou e migrou posteriormente para a América do Sul ao longo ou após o surgimento do ístmo do Panamá, uma ponte terrestre que conectou a América Central com a América do Sul no final do Plioceno e começo do Pleistoceno (aproximadamente 2,6 milhões de anos atrás). Essa ponte favoreceu a migração e a ocupação do espaço por várias outras linhagens de animais e plantas e o evento ficou conhecido como o Grande Intercâmbio Biótico Americano (Giba).

Um evento geológico como esse criou uma conexão permanente entre dois lugares, mas é importante entender o contexto climático da Terra durante o período. Afinal de contas, só ter uma passagem pode não ser suficiente para que animais migrem; é preciso que algo os empurre ou os force a migrar.

Ao longo do Pleistoceno, o planeta passou por diversos eventos de temperaturas mais frias, com glaciação acentuada, aumento de neve em montanhas muito altas e formação de geleiras, essas últimas mais acentuadas no hemisfério norte, intercaladas por períodos mais quentes e amenos. No continente americano, todo o Canadá e uma parte do norte dos Estados Unidos ficou coberto por neve durante as glaciações. As geleiras causaram redução do nível do mar (estimadas em até 120m!) e a exposição de regiões que antes estavam submersas, sendo que algumas delas conectaram locais antes separados. Um exemplo disso é a relação da migração e ocupação humana nas américas por meio do Estreito de Behring, entre o Alasca e a Rússia. Nos momentos em que o nível do mar abaixou muito, uma ponte terrestre pode ter se formado entre os dois continentes e permitido a migração humana.

Mas isso aconteceu mais recentemente. No caso dos animais que já existiam no continente americano, as geleiras podem tê-los forçado a migrar para o sul e chegar até o nosso continente (como evidências apontam que tenha acontecido com as ondas migratórias de outros felinos). Outra consequência causada por períodos glaciais é que o planeta tende a ficar geralmente mais seco. Próximo ao Polo Norte, fica frio o bastante para ocorrerem glaciares e a vegetação rasteira de tundra e taiga, existentes até hoje nas latitudes maiores. Ao longo dos trópicos, ainda que florestas tropicais permaneçam, ocorre retração das áreas de floresta densa e a expansão de áreas de florestas secas, pastos, savanas; no Brasil, dentro de suas características climáticas e história geológica, as áreas de Cerrado (e outros biomas mais secos) se expandiam nos períodos frios e secos (períodos glaciais), enquanto nos períodos amenos (interglaciais) havia retração desse bioma e as florestas tropicais (amazônica e de mata atlântica) expandiam.

Então, ancestrais do Smilodon populator migraram do norte e encontraram condições favoráveis na América do Sul para ocupar os territórios daqui. Além de muitas de suas presas terem migrado também, aqui encontraram potenciais presas novas que favoreceram sua permanência e desenvolvimento, como preguiças, cervídeos, gliptodontes e ungulados, todos muito maiores do que os tigres. Tanto que o Smilodon populator é a maior espécie do gênero e com o corpo mais robustos, o que pode ter relação com o tamanho das presas que esse animal conseguia caçar. Estima-se que conseguiriam caçar presas com mais de uma tonelada e, talvez, de até três toneladas! Além disso, as amplas áreas abertas devem ter sido uma pressão seletiva para moldar esse tipo corporal em relação ao estilo de caça, uma vez que o animal poderia se esconder e atacar de surpresa. A robustez dos membros permitia explosões para corridas curtas e força para machucar e derrubar as presas. Com esse conjunto de características e evidência, também já se sugeriu a possibilidade de caçarem em pequenos grupos para abater presas muito grandes, como mamutes (talvez o filme volte a surgir na mente…).

Os dentes

Um detalhe importante dos tigres-dente-de-sabre – o mais importante! – e que não podemos esquecer: os dentes. Eles funcionavam para perfurar e rasgar a carne das presas e causar um dano grande, provavelmente causando sangramentos internos que debilitavam a presa, a qual era finalizada posteriormente. Isso faz sentido, especialmente pelas presas serem grandes e terem grande capacidade de causar dano nesses animais e porque os dentes são um recurso caro (custa muita energia para desenvolver um dente) e não podem ser repostos (assim como a maioria dos mamíferos, os tigres-dente-de-sabre deveriam ter duas dentições, a de leite e a definitiva). Então, em vez de matar as presas na hora do ataque, a estratégia poderia ser machucá-la o máximo possível para depois, quando debilitada e em segurança, se alimentarem. Um resumo sobre o corpo desses animais é que poderia ser uma mistura de características, com crânio e dentes de felinos para perfurar e cortar, e tipo corporal mais parecido com o de ursos, dando força e resistência para ataques de emboscada.

Os animais não usam suas boca e dentes somente para comer ou se defender. Eles usam também para interagir com outros indivíduos da mesma espécie. Isso é muito bem catalogado nas disputadas por território ou para acasalamento e é observado em felinos atuais. No caso do Smilodon populator, crânios dessa espécie foram encontrados com perfurações que foram interpretadas como causadas por dentes de outro tigre, porque a forma e as dimensões da perfuração se adequavam com as de um dente de tigre-dente-de-sabre. Essa evidência sugere que havia interação social entre esses animais e que eles poderiam competir e brigar por território, liderança e/ou acasalamento. A diferença para os felinos atuais é que a perfuração craniana era fatal, enquanto os felinos atuais têm dentes bem mais curtos e as mordidas tenham menos chance de levar à morte do competidor.

Na medida em que a última era glacial terminava, há aproximadamente 11 mil anos, a temperatura da Terra aumentou e houve redução das áreas abertas onde boa parte das presas viviam e das condições de caça para o Smilodon populator. Isso por si só já trouxe um efeito enorme para a sobrevivência da espécie e deve ter sido um fator muito significativo para a sua extinção. Mas não se deve descartar um dos acontecimentos mais relevantes: a colonização da América do Sul pelo Homo sapiens (nóis!) há aproximadamente 15 mil anos. É notória a relação entre a chegada do homem e a extinção de faunas muito grandes, como a que existia aqui. Sendo assim, a caça de animais de grande porte pelos humanos levou uma competição desbalanceada com os tigres-dente-de-sabre, os quais foram extintos.

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Sobre o autor / Thiago Mariani

Licenciado e bacharel em Ciências Biológicas, mestre em Biologia Animal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira, usando particularmente morfologia comparada e morfometria em ossos do […]