Por Thiago Mariani
Biólogo e doutor em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É vinculado ao Laboratório de Paleontologia e Osteologia Comparada da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Laboratório de Processamento de Imagens do Museu Nacional. Desenvolve pesquisas sobre a evolução de tartarugas, com foco em um grupo conhecido como Pleurodira.
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A coluna Túnel do Tempo hoje volta ao passado até um pantanal gigantesco que existiu no norte da América do Sul. Esse pantanal era tão extenso que cobriu partes do Peru, Colômbia, Venezuela e o oeste da bacia Amazônica brasileira. Esse mega pantanal ficou conhecido como sistema Pebas e possuía uma fauna de animais gigantescos, como jacarés, tartarugas e mamíferos. Ele existiu antes do rio Amazonas ter a cara que tem atualmente. Parece loucura, né? Mas no passado, o Amazonas não foi o rio que conhecemos atualmente. Então simbora nessa onda aí para conhecer melhor essa história!
A história da bacia Amazônica – do Mioceno até o presente
Há aproximadamente 15 milhões de anos, existiu um mega pantanal no norte da América do Sul que era tão vasto, tão gigantesco, que cobriu partes dos atuais territórios de Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela. Esse pantanal é conhecido como sistema Pebas e sua formação se deu ao longo do período Mioceno (23-5 milhões de anos). Nessa época, a cordilheira andina estava começando a se formar (na verdade, a cordilheira começou um pouco antes, há aproximadamente 31 milhões de anos, no período Oligoceno) e o rio Amazonas tinha outra configuração: somente a porção leste existia e desaguava no Oceano Atlântico. A parte oeste do rio (e da bacia hidrográfica) era isolada e dividida por um arco geológico chamado de Arco Purus.
Por essa breve introdução já dá para notar que a cordilheira andina teve uma bela influência na formação da bacia amazônica, né? Bem, acontece que seu soerguimento agiu principalmente de duas formas. A primeira é que as cordilheiras mexem na crosta terrestre como uma gangorra: se um lado sobe, outro tem que descer. E na medida em que as montanhas aumentaram de tamanho, se formou uma área rebaixada – uma bacia – na sua parte leste, para onde toda erosão dessas montanhas e das partes altas à leste da área (formadas pelo Cráton Amazônico) fluía pelos rios que se formaram.
A segunda forma de influência é que montanhas funcionam como barreiras para nuvens. Durante o Mioceno, a temperatura do nosso planeta era mais quente do que é atualmente, logo era mais úmido e havia mais chuvas. Então, as montanhas dos Andes impediam que parte da umidade vinda da parte leste atravessasse para o outro lado e muita chuva caía dentro dessa bacia recém-formada. A consequência disso é que, com o tempo, muita água se acumulou e uma vasta área alagada se formou – um sistema de rios, canais, lagoas e pantanais conhecido como sistema Pebas.
Esse sistema perdurou por aproximadamente cinco milhões de anos, quando houve um aumento no ritmo de elevação da cordilheira andina e a região onde antes existia uma bacia tornou-se local onde solo, sedimentos e rocha eram erodidos no sentido leste (sentido do Atlântico). Até que, há aproximadamente 9-10 milhões de anos, as partes oeste – onde havia o mega pantanal, agora dominada por rios – e leste se uniram, tendo o rio Amazonas adquirido sua configuração atual.
A ascensão dos répteis gigantes…e sua queda
Imaginem, agora, esse lugar cheio, cheio, cheio, mas cheio de água. Água para tudo quanto é lado. É lógico que debaixo dela estava cheio de bicho. Não eram poucos e alguns não eram tão pequenos. Foi durante a época dessa enorme área alagada que houve a maior diversidade das linhagens recentes de jacarés, com muitos fósseis coletados e muitas espécies descritas (Cidade et al., 2019a). Essas espécies de jacaré também eram anatomicamente muito diferentes, com crânios adaptados para diversos tipos de alimentação. Havia aqueles especializados em comer peixes e que tinham a boca comprida e fina (Gryposuchus), semelhante aos gaviais; aqueles generalistas (Caiman, Purusaurus), que comiam de tudo, de boca larga e curta como os jacarés atuais; tinha uma espécie (Mourasuchus) que comia por “engolfamento”, isto é, abocanhava o máximo possível de pequenos animais (Cidade et al., 2019b); e por aí vai.
Um fato curioso é que muitas dessas espécies de jacarés atingiram tamanhos colossais. Estima-se que o Mourasuchus, por exemplo, podia alcançar 6,5 metros de comprimento e o maior espécime de Gryposuchus poderia ter entre 9 e 10 metros. Mas esses animais não chegavam aos pés do Purusaurus, cujas estimativas chegam a 12,5 metros! Doze metros e meio de puro jacaré! Mas com tanto lugar cheio de água, existia espaço e comida à beça para toda essa diversidade de espécies, tamanhos e hábitos alimentares.
Outro grupo de répteis com bastante representatividade é o das tartarugas. Muitos esqueletos já foram encontrados e descritos, apesar de não haver tanta diversidade de espécies como o dos jacarés. Entretanto, duas espécies também se destacam por atingirem tamanhos gigantescos, o que faria a atual tartaruga gigante da Amazônia (Podocnemis expansa) pequenininha perto delas. Eram a Caninemys tridentata e a Stupendemys geographicus. Ambas eram grandes, sendo a Stupendemys geographicus maior, podendo atingir 2,4 metros de comprimentos do casco. As duas coexistiram nesse enorme pantanal, mas, assim como os jacarés, deviam ter dietas diferentes, porque seus crânios são bastante distintos (Cadena et al., 2021).
Essas espécies floresceram enquanto o Sistema Pebas durou. Mas houve um momento em que toda essa água começou a escoar no sentido leste, na medida em que as montanhas da cordilheira dos Andes se elevavam. Dessa forma, aquela bacia onde a água se acumulou começou a mudar, deixando de ser um ambiente dominado por locais alagados e passou a ser mais elevado e dominado por rios, cujas águas confluíram para o leste e culminaram na união das partes oeste e leste do que atualmente se conhece como rio Amazonas. Isso acontece no final do Mioceno, entre 9-5 milhões de anos, e todas essas espécies gigantes foram extintas. No entanto, grande parte dos atuais animais amazônicos é originária da fauna existente nessa época.
Importância do sistema atualmente
Esse mega pantanal, o sistema Pebas, é o primórdio do que depois se consagrou como o rio Amazonas e toda a extensão de sua bacia hidrográfica. É irônico que os movimentos tectônicos que geraram a cadeia andina agiram, inicialmente, para a formação dessa área alagada e depois para a sua decadência. E toda a fauna que se originou e se desenvolveu ali seguiu o fluxo do ambiente; muitas sobreviveram, mas outras tantas também pereceram, especialmente os gigantes. Além de aprender sobre o surgimento de um dos rios mais importantes para a América do Sul e do mundo, é interessante refletir sobre como a natureza é indomável.
Referências
– Albert et al. 2018. The changing course of the Amazon River in the Neogene: center stage for Neotropical diversification. Neotropical Ichthyology.
– Cadena et al. 2020. The anatomy, paleobiology, and evolutionary relationships of the largest extinct side-necked turtle. Science Advances.
– Cadena et al. 2021. New insights on the anatomy and ontogeny of the largest extinct freshwater turtles. Heliyon.
– Cidade et al. 2019b. The feeding habits of the strange crocodylian Mourasuchus (Alligatoroidea, Caimaninae): a review, new hypothesis and perspectives. Revista Brasileira de Paleontologia.
– Hoorn et al. 2010. The development of the Amazonian mega-wetland (Miocene; Brazil, Colombia, Peru, Bolivia). In: Amazonia, Landscape and Species Evolution: A Look into the Past, 1st edition. Eds: C. Hoorn, F. P. Wesselingh. Blackwell Publishing.
– Hoorn et al. 2022. The Miocene wetland of western Amazonia and its role in Neotropical biogeography. Botanical Journal of the Linnean Society.
– Latrubesse et al. 2010. The Late Miocene paleogeography of the Amazon Basin and the evolution of the Amazon River system. Earth-Science Reviews.
– Riff et al. 2010. Neogene crocodile and turtle fauna in northern South America. In: Amazonia, Landscape and Species Evolution: A Look into the Past, 1st edition. Eds: C. Hoorn, F. P. Wesselingh. Blackwell Publishing.
– G1. 2021. Exposição em Manaus reúne animais que viveram na Amazônia há milhões de anos.
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