Por Vera Maria Ferreira da Silva
Bióloga, mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior e doutora em Mammalian Ecology and Reproduction pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). É pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e coordena o Projeto Boto na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e o Projeto Mamíferos Aquáticos da Amazônia, da Associação dos Amigos do Peixe-boi (Ampa)
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O boto-vermelho (Inia geoffrensis) e o tucuxi (Sotalia fluviatilis) são golfinhos fluviais que habitam os rios da bacia Amazônica. Esses golfinhos são exclusivamente aquáticos, piscívoros, ou seja, se alimentam essencialmente de peixes, e são espécies de vida longa, chegando a viver mais de 40 anos.
Além do consumo de peixes, existem registros pontuais de ingestão de caranguejo (Poppiana argentinianus), de um pequeno quelônio (Podocnemis unifilis) e, possivelmente, até mesmo de serpentes como a sucuri (Eunectes beniensis) pelo boto-vermelho. Todas essas espécies têm forte dependência do ambiente aquático e se alimentam em diferentes níveis da cadeia trófica.
O boto-vermelho e o tucuxi, junto com os mustelídeos aquáticos (ariranha e lontra) e os jacarés, são os maiores predadores aquáticos na região Amazônica e encontram-se no topo da cadeia alimentar. Os golfinhos, no entanto, não exploram outros recursos alimentares além de espécies aquáticas, como fazem as outras espécies listadas, que podem também se alimentar de pequenos vertebrados terrestres.
O peixe-boi (Trichechus inunguis), entretanto, é o maior herbívoro desse ecossistema aquático fluvial e se alimenta quase exclusivamente de plantas aquáticas e semiaquáticas, além de raízes e bulbos no fundo dos corpos d’água e de frutos de palmeiras e de leguminosas nas áreas de igapós. A riqueza e a abundância dessas plantas refletem a diversidade da dieta alimentar dos peixes-bois e de outros animais herbívoros na região. As plantas aquáticas são conhecidas por atuarem como filtros, absorvendo e acumulando diversos poluentes presentes no meio aquático, incluindo hidrocarbonetos e metais pesados como o mercúrio.
Os rios da Amazônia abrigam mais de três mil espécies de peixes de tamanhos variados – desde poucos centímetros a mais de dois metros de comprimento – e com hábitos alimentares extremamente diversos. Esses peixes podem ser detritívoros, se alimentando no fundo dos corpos d’água de plâncton, de frutos e de sementes, e ainda de outras espécies de peixes (carnívoros e necrófagos), também predadores.
Entre as inúmeras ameaças que existem sobre os organismos aquáticos na Amazônia, a contaminação pelo mercúrio (Hg) é considerada uma das mais graves. O mercúrio é um metal pesado encontrado naturalmente no meio ambiente, mas é também liberado por meio de diferentes tipos de atividades antrópicas (humanas). Dentre os metais contaminantes, ele é o que apresenta a maior toxicidade, pois além de ser o único metal capaz de sofrer biomagnificação em quase todas as cadeias alimentares, tem a capacidade de atravessar qualquer barreira celular, ser rapidamente absorvido pelo corpo e ser muito lentamente eliminado. Esse metal consegue atravessar barreiras placentárias ou hematoencefálicas, com fácil acesso ao feto e ao sistema nervoso.
A principal via de absorção de mercúrio no ambiente aquático ocorre pela dieta, ou seja, sua concentração aumenta conforme aumenta o nível trófico da espécie. Assim, os animais ao longo e no topo da cadeia trófica tendem a acumular altas concentrações de mercúrio em seus tecidos.
Na Amazônia, grande parte do mercúrio liberado no ambiente ao longo das últimas décadas foi pelo garimpo ilegal do ouro. Embora utilizando a substância em grande escala, o garimpo não é a única fonte antrópica desse metal: o desmatamento e as queimadas são fontes importantes de mercúrio, além do barramento dos rios. A mobilização do mercúrio em barragens foi registrada em diversas regiões do mundo, confirmando que essas estruturas favorecem tanto os processos de biotransformação do metal como os de acúmulo e biomagnificação da cadeia alimentar.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que o limite máximo de consumo semanal de mercúrio seja de 300 μg por pessoa. Os níveis de mercúrio registrados em músculo úmido de peixes piscívoros como a dourada, o tucunaré e o apapá (entre outros), amplamente consumidos na região Amazônica, têm em média 0,36 a 0,66 μg de mercúrio por grama de músculo.
A base da dieta das populações ribeirinhas e nativas é o peixe, contribuindo com cerca de 80% da ingestão de proteínas. Ribeirinhos da região do Tapajós, por exemplo, comem em média 141 g de peixe por refeição, frequentemente composta de peixes piscívoros, o que resultaria em um consumo médio semanal de mais de 340 μg de Hg, superando amplamente o limite recomendado pela OMS.
Comprovadamente, o mercúrio é o único metal que causou óbitos em humanos devido à contaminação ambiental, particularmente pelo consumo de peixes contaminados. Reconhecidamente, a contaminação pelo metal pode causar em humanos alterações do sistema nervoso central provocando complicações neurológicas, dificuldades de coordenação e deterioração progressiva da visão e do tato. Foi mostrado que a exposição crônica a doses relativamente baixas de dessa substância já seria suficiente para provocar alterações no desenvolvimento psicomotor e aumentar a probabilidade de processos genotóxicos, como a incidência de câncer e a malformação fetal com microcefalia, cegueira, retardo mental e anomalias físicas.
Os mamíferos aquáticos vivem e dependem do ambiente aquático saudável para sua alimentação, reprodução e manutenção. A dieta exclusiva de peixes e em grande proporção de peixes piscívoros pelos golfinhos fluviais e pelos mustelídeos aquáticos, e de plantas aquáticas que absorvem e acumulam esse metal pelo peixe-boi, sugere que esses animais potencialmente possuem altas taxas de mercúrio em seus tecidos.
Embora não seja conhecida a extensão dessa contaminação, os efeitos deletérios descritos para os humanos podem certamente estar afetando esses animais e as consequências a médio e longo prazos para a conservação dessas espécies da fauna aquática na Amazônia podem ser bastante drásticas do ponto de vista populacional.
O garimpo ilegal na Amazônia para a extração do ouro é a maior fonte comprovada de contaminação do ambiente aquático, afetando não só as populações humanas nas áreas de garimpo e entorno, mas também comprometendo toda a biodiversidade local. Desde 2013, o Brasil é signatário da Convenção de Minamata, em que assumiu internacionalmente o compromisso de combater a contaminação ambiental pelo mercúrio, mas, lamentavelmente, não é isso que temos visto.
Referências
– Crespo-López, M.E., Oliveira, M.A., Takeda, P.Y., Santos-Sacramento, L., Lopes-Araújo, A., Arrifano, G. de P., (2021) Mercúrio na Amazônia uma breve contextualização do problema.
– Lacerda, L.D., e Malm, O. (2008). Contaminação por mercúrio em ecossistemas aquáticos: uma análise das áreas criticas. Estudos Avançados 22(63):173-190.
– United Nations Environment Program- UNEP (2002). Chemicals: Global Mercury Assessment. Geneva, 2002.
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