Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena (SP)
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Nós, seres humanos, assim como todos os seres vivos, como exercício de expressão ecológica, nos relacionamos com tudo que nos cerca. Infelizmente, essa expressão deixa, muitas vezes, pegadas profundas no nosso ambiente, gerando destruição e conflitos.
Os centros de triagem e reabilitação de animais silvestres (Cetras), como locais de recepção, triagem e destinação de fauna, são equipamentos cujo principal objetivo é o de tentar sanar, da melhor maneira possível, os resultados negativos advindos desse conflito.
Por isso que, na maioria das vezes, os Cetras recebem animais silvestres feridos, fisicamente combalidos. Mas também, independentemente de sua situação, chegam animais que estavam sendo mantidos em cativeiro ilegal e que foram apreendidos pelas estruturas de combate aos crimes contra a fauna (policiais, agentes de fiscalização etc.).
Diante dessa realidade, qualquer animal silvestre, sadio ou doente, ferido ou não, filhotes, adulto, da fauna silvestre nativa ou, excepcionalmente exótica ou híbrida, sendo vítima desse conflito, pode parar em um Cetras. Isso gera um leque muito amplo de possibilidades e de variedades de situações. Resumindo: em se tratando de animais de maneira geral, quando se considera tipos, espécies ou grupo de animais, os Cetras restringem apenas a recepção daqueles considerados domésticos. Contudo, quando se trata de centros de gestão pública, quase não há restrição quanto à situação ou conflito que levaria um determinado animal para atendimento. Para exemplificar e explicar, quando recebemos um determinado animal, é muito importante o levantamento de todas as informações possíveis sobre a sua história pregressa, contudo quase não há aspectos dessa história que pode impedir ou que restringe a possibilidade desse espécime ser recebido por um Cetras.
Você pode imaginar, caro leitor, quantas possibilidades e desafios distintos se apresentam na recepção de animais em um centro de triagem e reabilitação? A título de comparação, em um hospital (humano), de forma bem resumida, se oferece assistência médica em caráter curativo ou preventivo e se desenvolve pesquisa médica para apenas uma espécie. E todos sabemos, ainda mais nesses tempos de pandemia, quantos desafios e dificuldades a que hospitais estão submetidos.
Porém, em um Cetras, além da assistência médica veterinária, deve-se realizar triagem, manejo e destinação de uma ampla variedade de espécies e grupos animais, oriundos das mais diversas situações.
Por isso, os Cetras têm que cumprir duas tarefas primordiais, que se sobrepõem a todas as outras; para o animal atendido, o centro deve prover o seu bem-estar e a sua correta destinação. Em resumo, cuidar para que fiquem bem, prioritariamente como se não existisse o ser humano, e encaminhá-los para um ambiente onde a nossa interferência é mínima. Isso, também para que a segunda ação importante seja cumprida, a do ambientalmente correto posicionamento desse animal, ou seja, para que ele possa cumprir seu papel nas complexas teias de relacionamento existente na natureza.
Todavia, caso esse animal não possa prescindir dos nossos cuidados, prevalece ainda a primeira tarefa, ou seja, o bem-estar daquele ser vivo sob os nossos cuidados.
Um dos maiores desafios das instituições que mantêm Cetras é buscar prover todas as necessidades materiais e técnicas necessárias para o enfrentamento dos desafios diários que se apresentam a esses locais de atendimento à fauna silvestre. Também elaborar manuais técnicos, normas e protocolos formalmente e legalmente estabelecidos.
Contudo, quem trabalha em Cetras, sabe que os manuais, protocolos e normativas nunca vão prover resposta imediata, direta e automática a todos os desafios que nos são apresentados.
Também sabemos que os desafios diários de manejo, cuidado, nutrição e tantos outros nunca poderão ser cobertos ou previstos completamente sob o aspecto material.
Nos Cetras, temos sempre que buscar a excelência material, procedimental e técnica. Também sempre seguir os manuais e normas vigentes. Contudo, sempre haverá um momento atípico no qual o material disponível poderá não ter aplicação direta e a norma não funcionará como um tutorial ou manual de instrução rígido. Uma situação de ferimentos graves cujas capacidades estão além das condições de atendimento veterinário do Cetras, a chegada de um espécime raro e/ou de fauna exótica, cujo manejo seja incomum no Cetras, a chegada de muitos filhotes vindos de uma grande apreensão. É nesse tipo de situação atípica, dentre muitas outras, que temos que fazer o exercício do necessário e do possível. Em outras palavras, utilizarmos os recursos técnicos, materiais e legais à nossa disposição para aquela situação, mas, no caso de escassez, ausência ou inadequação desses recursos, devemos ter a capacidade do exercício do possível, sem nunca esquecer as tarefas básicas dos Cetras: cuidar bem e destinar bem os animais.
Um exemplo prático desse conceito de gestão de Cetras pode ser retirado da própria Instrução Normativa Ibama nº 5/2021. Lá no artigo 22, ela menciona que a soltura da modalidade “posterior”, isto é, aquela que não se deu de maneira rápida ou imediata, deverá ser realizada preferencialmente em Áreas de Soltura de Animais Silvestres (Asas) formalmente reconhecidas. Nessa orientação da norma, temos implícito o necessário caminho a percorrer, ou seja, buscarmos parcerias com as propriedades privadas ou públicas para o reconhecimento e cadastramento como Asas, porque é essa a situação tecnicamente mais adequada para a soltura de animais silvestres considerados aptos para tal.
Contudo, se houver uma situação maior que impede a soltura de animais aptos para uma Asas, a norma respeita a exceção e não impede ou restringe legalmente aquilo que é o melhor possível para os animais e para o ambiente: o retorno ao ambiente natural.
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