Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
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A ideia desta coluna é trazer a visão de outras pessoas que trabalham com soltura e monitoramento de fauna em diferentes áreas do estado de São Paulo. Entrevistei a Lais, que dentre outras coisas, ressalta a importância dos predadores para a manutenção do equilíbrio ecológico e alerta para o problema do “especismo”, isto é, favorecer apenas uma espécie ou um grupo de espécies, que se aplicado a soltura pode vir a promover o desequilíbrio na própria área onde ocorre a soltura.
Lais Freitas Lopes é bióloga formada pelo Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu (SP). Movida por sua paixão pela natureza, dedica-se profissionalmente às áreas de educação ambiental, comportamento animal e reabilitação de animais silvestres. Autora do livro Guia de Aves de Botucatu e São Manuel, ela segue sua trajetória se dedicando à conservação da fauna silvestre. Atualmente, trabalha em sua tese de doutorado sobre o tema “Reabilitação, soltura e monitoramento de papagaios” e colabora na EcoAsas, uma área de soltura e monitoramento de fauna silvestre, onde atua devolvendo a liberdade a muitas aves que foram vítimas do tráfico, posse ilegal e acidentes.
O Guia de Aves de Botucatu e São Manuel pode ser adquirido junto ao Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu pelos telefones (14) 3880-0328 e (14) 3880-0330 ou via e-mail: silvia.nishida@unesp.br.
Adriana Prestes – Afinal, o que é uma soltura de animal silvestre?
Lais Freitas Lopes – A soltura de um animal silvestre é a última etapa de um processo longo que começa muito antes de o animal chegar ao local onde será solto, que normalmente são as áreas de soltura e monitoramento de fauna. É importante ressaltar que um animal destinado à soltura, ou seja, que será devolvido ao ambiente natural, precisa antes passar por avaliação clínica e ser considerado apto. Isso porque muitos passam longos períodos da vida no cativeiro e precisam reaprender a buscar alimento, interagir com indivíduos da própria espécie e reconhecer predadores. A soltura que comumente vemos sendo realizada, que ocorre principalmente com aves, onde as pessoas só abrem a gaiola e as soltam, só pode ser realizada pelo órgão ambiental competente e se o animal for um indivíduo adulto e recém capturado. Caso contrário, o animal precisa passar por um Cetras (centro de triagem e reabilitação de animais silvestres), que então o destinará ao local mais adequado, que pode ser a soltura.
Destaco também que o ato de soltar um animal na natureza, a soltura de que estamos falando, ecologicamente é de grande importância que seja realizada em um local onde já existe ocorrência da espécie para que não ocorra a introdução em um local onde ela não ocorre. Pois, sabemos que as espécies silvestres apresentam uma distribuição característica, com animais que ocorrem na Mata Atlântica, no Cerrado e animais de ampla distribuição em muitos biomas. Por isso, soltar os animais nas áreas de soltura, que são locais com a comunidade de fauna conhecida e monitoramento, é de grande importância.
Ressalto também que a soltura é diferente de outras ações comumente realizadas como a reintrodução, que se trata de devolver os animais em locais onde a espécie não ocorre, mas já ocorreu em algum momento. A reintrodução se trata de um trabalho de reestabelecer populações nos locais que já fizeram parte de sua distribuição natural. Outro termo também muito comum é a translocação de animais, que se trata de deslocar o animal de sua área de vida para outra área, e pode ser aplicada com o objetivo de promover uma melhora do estado de conservação das espécies e a restauração das funções e processos naturais de ecossistemas.
Adriana Prestes – Normalmente as solturas são de pássaros. Por quê?
Lais Freitas Lopes – A soltura de aves ocorre sim em maior frequência em relação a soltura de outros grupos como mamíferos, répteis, etc. Isso ocorre porque as aves estão entre o grupo de animais que mais é traficado no mundo. Muitos estudos demostram que no Brasil cerca de 82% dos animais traficados são aves. Elas estão na mira dos traficantes pela beleza de seu canto, suas cores exuberantes e a capacidade de imitar a voz humana de algumas espécies, como os papagaios. Esse grande fluxo de aves traficadas gera consequências como a superlotação nos Cetras e a grande quantidade de aves destinadas à soltura, refletindo também na grande demanda de ser ter um número amplo de áreas de solturas para que possam comportar esses animais. Mas não podemos esquecer que os outros grupos da fauna também são vítimas da mesma rede de tráfico e precisam de destinação.
Adriana Prestes – Por que as pessoas têm tanta resistência em apreciar e até evitam as solturas de animais como gambás, roedores (exceto esquilos, que são considerados fofinhos) ou serpentes?
Lais Freitas Lopes – Acredito muito na ideia de grandes educadores ambientais que conheço e que dizem: nós preservamos e amamos aquilo que conhecemos! Culturalmente, em nosso país a fauna silvestre foi por muito tempo negligenciada. Por exemplo, temos muitas crianças que conhecem o leão, mas não o lobo-guará. Muitos gostam dos esquilos, mas não dos gambás. E isso é consequência de não os conhecer.
Quando as pessoas passam a entender o papel ecológico de uma espécie como os gambás, suas curiosidades, suas fantásticas estratégias de sobrevivência e sua importância no controle de outras espécies, elas passam a ver a espécie com outros olhos. Por isso, a grande importância de profissionais da área divulgarem a fauna silvestre. As pessoas precisam conhecer nossa riqueza e a importância dela para que admirem todas as espécies.
Um fator que também gera certo desconforto à população é a proximidade com que algumas espécies vivem de nossas casas. Mas é preciso entender que elas estão buscando novas áreas de vida nos centros urbanos por causa de nossas próprias ações, como o desmatamento, a fragmentação de habitat, o acúmulo e a destinação inadequada de lixo, que atrai roedores e, em consequência, seus predadores como as serpentes.
As serpentes são um capítulo à parte. Elas geram grande incomodo por muitas espécies apresentarem riscos aos seres humanos. Mas precisamos entender que elas também têm um papel fundamental nos ecossistemas e só estão em nosso ambiente por consequência também de nossas ações. Além disso, não somos presas para elas. Os acidentes ocorrem em casos de manipulação inadequada ou de o animal se sentir ameaçado.
Adriana Prestes – Por que é importante monitorar a fauna em áreas que façam ou recebam animais para soltura?
Lais Freitas Lopes – O monitoramento pós soltura é de grande importância, pois a soltura é um processo sobre o qual ainda estamos aprendendo muito. Estamos aprendendo quais são as características fundamentais que os animais soltos precisam ter para que possam sobreviver, se alimentar e se reproduzir, que é o grande objetivo de soltá-los. Esperamos que eles possam contribuir com a manutenção de suas populações em quantidade de indivíduos e variabilidade genética. É importante também monitorar para não sobrecarregar a própria área de soltura, pois a população que está sendo solta age diretamente sobre a população que já estava estabelecida no local. Por isso, é muito importante monitorar e acompanhar a eficácia dos protocolos de soltura já estabelecidos e desenvolver novos protocolos baseados em novas experiências de soltura e monitoramento.
Adriana Prestes – Qual o objetivo de monitorar predadores topo de cadeia alimentar, como os pumas?
Lais Freitas Lopes – Quando falamos de soltura de grandes predadores, o processo de monitoramento é fundamental. Muitos estudos já realizaram o monitoramento de grandes felinos soltos e foram fundamentais para, por exemplo, estabelecer qual seria o tamanho aproximado do território do animal, ou seja, o tamanho da área onde ele vive e se desloca. Esse conhecimento foi de fundamental importância para as tomadas de decisões em relação aos locais de soltura, estabelecimento de distância de rodovias e de outras propriedades rurais. Sabemos que os animais, em muitos casos, não ficam restritos às áreas onde foram soltos, podendo se deslocar para outros locais em busca de alimento ou para estabelecer novos territórios. Por isso, monitorar, conhecer os hábitos do animal e instruir as propriedades mais próximas aumentam o sucesso da soltura de espécies topo de cadeia.
Mais uma vez, a atuação das áreas de soltura na educação ambiental e na parceria com os moradores da região é destaque. Quando as propriedades próximas atuam em conjunto, conservando suas matas, compreendendo a importância da soltura desses animais e se estruturando para evitar interações negativas, como predação de criações, o sucesso da soltura passa a ser muito maior.
Monitoramento de puma – Imagem: Lais Freitas Lopes
Adriana Prestes – Conte um pouco de como é o dia a dia do trabalho que você faz com a fauna silvestre.
Lais Freitas Lopes – Atualmente, tenho me dedicado à pesquisa de reabilitação, soltura e monitoramento de uma das espécies que está entre as mais traficadas em nosso país: o papagaio-verdadeiro. Tem sido um grande desafio, pois além de ser uma espécie que chega em grande número aos Cetras, ela apresenta alta capacidade cognitiva, é extremamente social e monogâmica, ou seja, forma casais que permanecem juntos a vida toda. Essas características favorecem a criação de fortes vínculos com o ser humano, o desenvolvimento de estresse de cativeiro e consequências mais graves, como alterações comportamentais motoras e até a automutilação. Tornar esses animais aptos à soltura ou estabelecer dentro de suas possibilidades quais são as características que permitem que eles sejam devolvidos à natureza é um grande desafio.
Mas o monitoramento pós soltura dos indivíduos que acompanho vem como uma importante ferramenta que, acredito, trará muitas respostas às nossas perguntas.
Já na colaboração na EcoAsas, atuo no recebimento, ambientação, soltura e monitoramento das aves. Sem dúvida, a soltura é um dos momentos mais marcantes que pude acompanhar, sendo uma mistura de emoção e medo. Ficamos felizes e apreensivos sobre como a ave solta irá se adaptar.
Durante o monitoramento, vamos acompanhando cada ave se adaptando e é uma emoção indescritível, que me faz ter a certeza de que estamos no caminho certo, de que é possível, e que áreas de soltura como a que colaboro têm um papel fundamental nesse processo.
Adriana Prestes – Vivemos momentos difíceis no que tange à conservação ambiental e da biodiversidade. Quais são, na sua visão, as ações em que pessoas comuns podem se engajar e que fazem a diferença para podermos mudar a situação atual?
Lais Freitas Lopes – Acredito que nossa biodiversidade já sofreu perdas que são irreparáveis, mas isso não é motivo para desistir! Temos muitas espécies, de fauna e flora, que dependem de nós para serem conservadas. Apesar das poucas ações e políticas públicas em prol do meio ambiente, existem muitas iniciativas, instituições e pessoas comuns fazendo grandes feitos para na defesa do meio ambiente. E é isso que deve nos mover a continuar sempre.
Acredito muito na transformação por meio das novas gerações. A educação é a melhor ferramenta que temos para mudar o destino da nossa biodiversidade. Termino aqui com uma frase que me inspira muito, de autoria de Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.”
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