
Biólogo, mestre em Ecologia e agente de fiscalização ambiental federal
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“Moradora ganha na justiça posse de papagaio apreendido em 2018; ela tenta reencontrar o animal” – matéria publicada pelo portal G1 em 31 de julho de 2021
A matéria não poderia ser pior. Ela não foca no real problema, que é o tráfico de animais silvestres e no desejo egoísta de manter o animal em cativeiro.
Para variar, a idosa argumenta que tratava o animal como um filho e que o possuía há 35 anos. Primeiramente, se o trata como um filho e já o mantinha há 35 anos, está na hora de deixar o filho ir embora e cuidar de sua vida. Mas, ao contrário de uma criança que teria podido brincar e se transformado em um adolescente, que teria namorado e se divertido, a idosa que, lembremos, também não era uma idosa há 35 anos, roubou do papagaio os melhores anos de sua vida. O papagaio passou toda sua infância e juventude trancafiado na casa da receptadora do tráfico de animais silvestres. Ele não vivenciou os voos pelas matas, o convívio com outros de sua espécie; não se enamorou e não reproduziu. Isso para ficar somente no prejuízo individual.
Sob o aspecto ecológico, ele não dispersou sementes e também não se reproduziu. Ao longo de 35 anos, dezenas de outros papagaios deixaram de nascer. Acaba-se, assim, com o princípio da insignificância, tão alegado por advogados em casos assim e que muitas vezes é acatado pela Justiça.
Após apreendido pela Polícia, o animal finalmente teria o seu direito à liberdade garantido não fosse a equivocada decisão judicial. Equivocada não apenas no aspecto legal, mas também nos ético e biológico.
Sob o aspecto legal, há de se lembrar o disposto no artigo 25 da Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), que determina que os animais apreendidos serão prioritariamente libertos no ambiente natural e, na impossibilidade, entregues a zoológicos ou entidades assemelhadas, onde ficarão sob cuidados de técnicos habilitados. Portanto, a decisão fere duas vezes a legislação: o papagaio deveria ser solto e, caso não o fosse, não existe previsão de retorno à criminosa.
No que se refere à ética, após ser roubado do ninho, sequestrado do convívio com seus pais e com os da sua espécie, impedido de usufruir de sua LIBERDADE e juventude, o mínimo que se esperaria seria que a Justiça não perpetuasse seu cativeiro. Ademais, lembrando-se do caso de Salomão e as duas mães, quem realmente ama quer o melhor para seu filho. Não que o papagaio seja o filho da idosa, se o fosse, aliás, aos 35 anos já estaria livre.
Finalmente, sob o aspecto biológico, é mentira a alegação de que ele não poderia mais retornar à natureza. Existem inúmeros trabalhos científicos que demonstram exatamente o oposto.
Além de todas essas questões, outras igualmente relevantes necessitam ser abordadas. Possivelmente, se não estava preso, ele tinha suas asas cortadas. Assim, impedido de voar e de fugir, não se pode alegar que era um voluntário do cativeiro. Também é fato que a maioria das pessoas alimenta os papagaios quase que exclusivamente com girassol, que é um alimento gorduroso e inadequado. Finalmente, a alegação de 35 anos não vai além da alegação de uma criminosa que comete o crime continuado de cativeiro da fauna silvestre nativa por 35 anos, caso esteja falando a verdade.
A agora idosa, que quando iniciou o crime não o era, contribuiu e fomentou o tráfico de animais silvestres. A decisão de retorno do animal à condição do crime e a reportagem com o foco equivocado também favorecem o tráfico. A decisão não seguiu o disposto na Lei e a reportagem ignorou o problema ambiental. Caso a senhora fosse viciada em cocaína, a Justiça lhe garantiria suprimento da droga? Acho que não?
A mulher não é a vítima. Ela é o algoz.
A vítima é, e sempre foi, o papagaio. Mas, agora, a vítima corre o risco de retorno à prisão.
O texto reflete posição pessoal e não, necessariamente, institucional.
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