Por Arthur Brum¹, Kamila Bandeira² e Rodrigo Pêgas³
¹Doutorando em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), integrante do projeto Paleoantar e paleontólogo com foco no estudo de dinossauros e paleohistologia
²Doutoranda em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e paleontóloga especialista em sistemática de dinossauros saurópodes
³Doutorando em Evolução e Diversidade pela Universidade Federal do ABC, especializando-se em pterossauros
contato@faunanews.com.br
A história da exploração científica dos fósseis no país tem seu início e primeiras expansões com as expedições de naturalistas estrangeiros no século 19, um pouco depois da chegada da família real. Nessa época, como o Brasil não tinha nenhuma instituição de ensino superior, os pesquisadores (quase sempre naturalistas) tinham sua formação inteiramente no exterior, em seus países de origem. A primeira comissão científica foi então composta por Carl Friedrich Phillip Von Martius, médico e botânico, e Johann Baptist von Spix, zoólogo, que vieram com o séquito da arquiduquesa Maria Leopoldina, em 1817. Esses foram os primeiros a descrever um vertebrado fóssil do Brasil.
Com a independência em 1822 e a posterior regência de Pedro II, muito se buscou estabelecer uma identidade nacional. Nesse aspecto, reconhecer a extensão do território, assim como seus recursos minerais e riquezas, era de grande importância e comissões científicas e grandes expedições naturalistas foram incentivadas, especialmente pelo imperador. Em 1875, é formada a Comissão Geológica do império, liderada especialmente pelo geólogo Charles Frederick Hartt e organizada pelo paleontólogo Orville A. Derby – que posteriormente, ao se “apaixonar” pelo País, se naturalizou brasileiro e assumiu o cargo de diretor do Museu Nacional por muitos anos.
Sob forte incentivo do império, o dinamarquês Peter Lund (imagem acima) é um dos pioneiros e considerado um dos “pais” da paleontologia brasileira, por estruturar e fazer coletas sistemáticas de fósseis em Minas Gerais. Até então, uma grande parte do nosso conhecimento acerca da história natural brasileira estava a encargo de estrangeiros e grande parte desses materiais encontra-se no país de origem desses naturalistas, como é o caso de Lund.
Esse cenário começa a mudar com a ocupação do interior do Brasil e a implementação da segunda república. Em 1930, com Llewellyn Ivor Price (paleontólogo brasileiro dessa vez), junto ao antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), atuou não só no estudo científico dos fósseis de vertebrados por todo o Brasil como também na regularização da coleta, com a criação do Decreto-Lei nº 4.146 de 1942 junto ao governo Vargas. Embora a estruturação da paleontologia brasileira seja um movimento recente, ela tem crescido exponencialmente nas últimas décadas, com a formação e atuação de mais profissionais na área e criação de mais polos e museus locais e regionais. Mesmo assim, essa herança longínqua dos estrangeiros ainda permeia o presente.
O que a legislação nos diz?
Os fósseis são reconhecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil (Seção II – Da Cultura, Artigo 216) como patrimônio cultural brasileiro, sendo, portanto, bens da União e parte da memória e identidade nacionais, o que reflete parte dessa longa história do país como consolidação de uma nação. O Decreto-Lei nº 4.146, de 4 de março de 1942, reconhece os fósseis como propriedade da Nação, sendo sua extração fiscalizada pelo DNPM (atualmente Serviço Geológico do Brasil, Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais – CPRM – e tendo como reguladora a Agência Nacional de Mineração – ANM).
Nesse sentido, a lei estabelece que a exploração feita por museus brasileiros, sejam da União ou estaduais, está condicionada apenas à comunicação prévia à ANM. Segundo a Portaria do DNPM nº 155, de 12 de maio de 2016, museus municipais ou privados devem obter autorização prévia da ANM. Por outro lado, a coleta e o estudo de material fóssil no Brasil por instituições estrangeiras depende de autorização prévia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Portaria MCT nº 55, de 14 de março de 1990), que está condicionada à supervisão e parceria de uma instituição brasileira
A extração dos fósseis, segundo a Portaria nº 155, não pode ser por fins comerciais e os fósseis devem, necessariamente, ser armazenados em instituições nacionais de caráter público, tanto para fins científicos quanto didáticos, e levando em consideração a autorização de projetos junto ao CNPq. Em todo e qualquer caso, a regulamentação do MCT (portaria n° 55) é rígida quanto à permanência dos fósseis no Brasil. Ainda assim, a parceria com instituições estrangeiras não é proibitiva, nem em sua coleta nem no estudo, desde que devidamente vinculadas a um projeto científico junto a uma instituição brasileira com a devida autorização do CNPq.
O tráfico de fósseis e seus efeitos
O desenvolvimento e a expansão da paleontologia nacional têm possibilitado a abertura de museus locais, como o Museu Regional do Cariri (CE), que têm grande importância não só para identidade e cultura locais, como na geração de empregos (tanto diretos quanto indiretos) e crescimento econômico pelo geoturismo. Nesse sentido, chama à atenção o Geoparque Araripe, pelo seu trabalho de preservação da história natural da região e valorização da cultura local, assim como o Vale dos Dinossauros, em Sousa (PB), que guarda importantes registros de pegadas e rastros de dinossauros.
O contrabando de fósseis surge nessa contracorrente. A base da extração ilegal normalmente é vinculada a um assistencialismo ou recompensa financeira da população local e/ou extratores irregulares. Nesse caso, essa extração desordenada pode gerar danos não só físicos ao material, como quebra do fóssil devido a coleta indevida e forjarias para aumentar o valor comercial), mas também perdas científicas, como informações de localidade, camada e disposição dos fósseis. Essas informações são imprescindíveis para se saber a idade, detalhes da fossilização, entre outras. Assim, o espécime deixa grandes lacunas para o entendimento de como aquele ambiente era no passado da Terra.
Nesse sentido, a lei que vale para o comércio ilegal é a de quem oferece mais dinheiro. Só que isso não implica apenas no material ficar armazenado em uma instituição estrangeira, dificultando o acesso para os brasileiros (paleontólogos ou não). No pior cenário, colecionadores particulares podem adquirir o material e ele ficar inacessível para cientistas em geral. Em qualquer cenário, o contrabando acarreta grandes perdas para a Ciência, tanto nacional quanto de um modo geral, seja por coleta realizada de forma desordenada seja no processo de venda.
O contra-ataque
A Polícia Federal tem atuado de forma a coibir e interceptar a rede de tráfico de fósseis. Em 10 anos, estima-se que 32 mil fósseis do Ceará foram apreendidos, o que nos dá um vislumbre, por baixo, do fluxo de material que sai do país. Na base dessa cadeia estão tanto locais das regiões fossilíferas quanto atravessadores, com anúncios disponíveis até mesmo em famosos sites de vendas.
Uma vez no exterior, o processo de repatriação do material é longo, árduo e demorado, exigindo um trabalho conjunto do Brasil com o país no qual o fóssil traficado foi depositado. Mesmo assim, há boas notícias. A Polícia Federal conseguiu a repatriação, em 2019, do pterossauro Anhanguera santanae depois de uma denúncia realizada em 2014 e um longo processo de investigações e de negociações com a França. O anúncio de venda do fóssil, que era oferecido por US$ 248,9 mil, estava sendo divulgado em redes sociais.
No caso recente do dinossauro Ubirajara jubatus, paleontólogos brasileiros, juntamente a Sociedade Brasileira de Paleontologia, atuaram para que a publicação científica referente a esse novo dinossauro fosse temporariamente retirada da revista, uma vez que a saída de material foi ilegal e ele está tombado em uma instituição estrangeira, indo contra a legislação brasileira. Mesmo com a retirada da publicação junto a revista, a repatriação desse espécime não é garantida.
O tráfico de fósseis brasileiros ainda é um grande problema para a paleontologia. Porém o cenário atual tem mostrado uma forte reação a essas atitudes, tanto em vias de ações legais, como a recente operação Santana Raptor organizada pela PF, quanto em vias científicas, como o caso do Ubirajara. Mesmo que o processo seja demorado, denúncias têm ajudado muito essas operações de combate e qualquer pessoa pode informar problemas e ilegalidades pelo site do Ministério Público Federal, desde que munida de provas (como capturas de tela, documentos, etc.).
O tráfico de fósseis vai contra o processo de estruturação da paleontologia brasileira e é um entrave ao seu desenvolvimento. O combate a essas atividades não só contribui para a valorização da Ciência nacional como também é a garantia de que esses fósseis irão para instituições científicas.
Referências
– Andrade, R.O. (2019) Brazil wins legal fight over 100-million-year-old fossil bounty. Nature, 570; 174. Doi: 10.1038/d41586-019-01781-8.
– Cassab, R.C.T. & Melo, D.J. (2016) Atividades paleontológicas de Llewellyn Ivor Price (1905 – 1980) em Peirópolis, Município de Uberaba (MG), de 1948 a 1960. Anais eletrônicos do 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Florianópolis, Santa Catarina.
– Decreto nº 98830, de 15 de janeiro de 1990. Secretaria de Ciência e Tecnologia
– Kellner, A.W.A. & Campos, D.A. (1999) Vertebrate paleontology in Brazil — a review. Episodes, 22(3): 238-251.
– Martinez, P.H. (2012) A nação pela pedra: coleções de paleontologia no Brasil, 1836-1844. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 19(4): 1155-1170. Doi: 10.1590/S0104-59702012000400004.
– Leia outros artigos da coluna CONVIDADO DO MÊP
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es).