Bióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde é mestranda junto ao Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias (NERF)
transportes@faunanews.com.br
Nem só de más (ou falsas) notícias vivem os brasileiros, felizmente. É o que mostra um estudo publicado semana passada que revisou artigos científicos com atropelamentos de fauna dos últimos 20 anos nas regiões tropicais e subtropicais do planeta. Dentre os continentes e países avaliados, apesar de ainda haver muito o que avançar, o trabalho destacou a América do Sul e o Brasil quanto ao número e à qualidade de estudos envolvendo colisões de veículos com animais. Em meio ao atual cenário brasileiro, com incessantes cortes do financiamento à pesquisa (que comprometem o seu futuro) e com a descredibilização do conhecimento científico por meio da disseminação desgovernada de fake news, resultados como o dessa revisão ressaltam a excelente atuação dos nossos pesquisadores e a necessidade de apoio financeiro, social e governamental a esse setor e a esses profissionais.
Tratando mais especificamente da revisão, o Brasil ganhou destaque em número de trabalhos publicados dentro do tópico de colisões entre animais e veículos, sendo responsável por 78,6% dos artigos da América Latina e 39,3% do mundo. Embora sejamos um país grande, e isso possa ter uma influência no número bruto de publicações, ficamos na frente de China, Austrália e Índia, por exemplo. Vale relembrar que nessa revisão foram excluídas a América do Norte e a Europa, justamente pelo interesse em identificar as lacunas geográficas dessa área do conhecimento e por esses já serem locais conhecidos pelo alto número de publicações.
Além disso, os pesquisadores dividiram os estudos avaliados entre “padronizados” ou não. No grupo dos padronizados foram considerados aqueles que tinham os atropelamentos como foco principal e realizaram mais de um levantamento de animais atropelados dentro de uma rota padronizada (não apenas registros acidentais ou indiretos). Esses corresponderam a 58,2% dos estudos avaliados. O Brasil foi o país com maior número de estudos dentro dessa categoria, representando 40,2%. Além disso, foi o com maior número de quilômetros de rodovias amostrados: mais de 1.035.011, um esforço quase duas vezes maior que o segundo colocado, a África do Sul.
A revisão também avaliou a qualidade desses estudos “padronizados” por meio de algumas variáveis relacionadas ao delineamento amostral e à descrição da amostragem. As variáveis escolhidas foram informações consideradas importantes para a replicabilidade e a comparação dentro e entre estudos, como tamanho do trecho de rodovia amostrado, número e frequência de amostragens, número de observadores, estimativa de detecção, entre outros. Essas informações dão credibilidade e confiabilidade aos estudos, já que os tornam mais transparentes e permitem que os dados possam ser comparados e utilizados para outras análises, como para predizer risco de atropelamento de fauna ou medir o efeito dos atropelamentos em populações. Apenas 8,4% dos estudos apresentaram todas as informações elencadas para um estudo com bom delineamento e menos de 1,4% possuíam alguma estimativa de detecção dos observadores (variável importante para estimativas de atropelamentos acuradas – já falamos disso em artigos de 2016 e 2019).
Levando em conta as 12 varáveis consideradas importantes pelos autores da revisão, a América do Sul é o continente que apresenta maior número de artigos para nove delas, sendo o único que apresentou alguma porcentagem de artigos com informação da probabilidade de detecção, mesmo que em pouco número. O Brasil é, em grande parte, responsável por isso, já que representa a maioria dos estudos do continente.
Além de ressaltar as diferenças entre continentes e países, o artigo também avaliou uma outra informação importante: quais espécies ou grupos taxonômicos predominam como alvos desses estudos. No total, foram encontradas 2.485 espécies de vertebrados silvestres nos artigos revisados, sendo os mamíferos o grupo mais presente, estando em 73% dos 308 trabalhos avaliados e em 69,9% dos que avaliavam uma única espécie. Quando contrastado o número total de espécies com a lista da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), apenas 107 delas têm as rodovias listadas como uma de suas ameaças e a severidade dessa ameaça às perdas populacionais é desconhecida para a maioria delas (64,5%).
Essa revisão nos apresenta um panorama dos estudos relacionados aos atropelamentos de fauna realizados nos trópicos e subtrópicos, revelando lacunas geográficas, taxonômicas e de desenho amostral. Lacunas que precisam ser priorizadas para que haja um maior equilíbrio a respeito do que sabemos sobre os diferentes grupos ou espécies e para que possamos avançar mundialmente no entendimento dos impactos das rodovias sobre a fauna e no planejamento da mitigação. A contribuição do Brasil dentro desse cenário é enorme, reflexo do trabalho dedicado dos nossos pesquisadores, que produzem não “apenas” quantidade, mas também qualidade e diversidade de trabalhos. Em meio ao descaso com o qual a Ciência brasileira vem sendo tratada, principalmente pelos atuais governantes, é gratificante ver o resultado de tanto esforço. Ainda temos muito a avançar, mas a pesquisa brasileira resiste . Resta saber até quando.
– Leia outros artigos da coluna FAUNA E TRANSPORTES
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)