O comércio de pets silvestres é herança da colonização e não legado indígena

Numa apresentação educativa sobre manejo e bem-estar de animais silvestres como pets, um palestrante inicia sua fala com imagens de povos originários da Amazônia brasileira. Em uma das fotos, uma menina indígena sorri com uma arara no ombro. Atrás dela, o fundo é todo verde: o verde da floresta. Em outra, uma mulher sentada oferece um de seus peitos a um macaco enquanto seu bebê mama no outro.

No próximo slide, o palestrante viria a mostrar mais imagens, agora de anfíbios como o Axolote, uma espécie de salamandra ameaçada de extinção e exótica ao Brasil e que, em algum ponto na história da internet, ficou famosa entre os aquaristas do YouTube; de répteis como geckos e camaleões; de uma menina loira beijando uma coruja pousada em seu braço e do artista Latino, que sorri ao lado de seu muito famoso e sempre vestido (hoje já falecido) macaco-prego pet, chamado Twelves.

Ao longo desses slides e sem fazer distinção alguma entre as imagens e as pessoas evidenciadas nelas, o palestrante dizia que o ser humano convive com animais há milhares de anos e exaltava uma pergunta que foi proferida como retórica, apesar de estar longe de ser: “Por que criar um animal silvestre como animal de companhia?”.

Cenas como essa, porém, não são exclusivas desse palestrante. O uso de imagens de povos indígenas, de ribeirinhos e de outras comunidades tradicionais segurando, tocando, alimentando ou caçando – e vejam só, até amamentando! – espécimes da fauna silvestre para falar sobre a indústria moderna de pets exóticos (exótico aqui como sinônimo de “fora do comum”) é muito comum e expõe uma tentativa, por vezes ingênua, de naturalizar essa prática colocando-a num lugar de “cultura brasileira”, de “coisa do nosso povo”. Termos que por si só já são abrangentes e apontam o início de um ciclo perigoso de generalizações.

Quero dizer de qual “povo” estamos falando? A qual “cultura brasileira” estamos nos referindo? Será mesmo que toda a atual indústria de pets exóticos originou-se da cultura indígena? Será mesmo que as relações são equiparáveis; passíveis de serem colocadas em um mesmo patamar?

Para tentar responder essas e outras perguntas, podemos recorrer à Ciência e ao trabalho de pesquisadores especialistas. Para tanto, temos, por exemplo, o artigo do Uirá Garcia, brasileiro e antropologista social, intitulado “Macacos também choram, ou um esboço para um conceito ameríndio de espécie” e o livro da Loretta A. Cormier, uma norte-americana especialista em Biologia Antropológica e Cultural, Kinship with Monkeys: The Guajá Foragers of Eastern Amazonia. Ambas as referências discorrem sobre assuntos componentes do ramo da Etnoprimatologia, disciplina que trata das relações entre os seres humanos e as outras espécies de primatas e os contextos através dos quais essas interações ocorrem e pelos quais são moduladas.

Indígenas e animais silvestres

Indígenas criam animais, certo? Certo. Mas para o povo awa-guajá, viventes das terras indígenas situadas em alguns dos últimos refúgios de floresta amazônica no estado do Maranhão, não só eles, mas todos os animais na natureza “criam” uns aos outros. A questão da “criação” não envolve nenhum tipo de aquisição, como compra e venda. Ela é designada pela proximidade, gira em torno da ideia de “kinship” ou “parentesco”. E inclusive não se aplica somente aos seres humanos.

Em um dos trechos do seu artigo, Uirá transcreve alguns exemplos citados pelos próprios homens awa-guajá: o veado-mateiro tem as cotias e algumas espécies de borboleta como seus animais de criação, as espécies de cigarras são animais de criação das palmeiras e os sabiás são vistos como animais de criação das capivaras. Para esse povo, pessoas, animais e floresta são intrinsicamente iguais e ligados entre si. A partir desse exemplo, descrevo aqui, então, a primeira diferença entre as relações que a sociedade moderna e os povos originários têm com os animais silvestres. Ou vai me dizer que você sempre pensou que as formigas são animais de criação da grama do seu jardim?

É importante salientar que isso não quer dizer que a relação dos povos originários com os animais silvestres seja apenas flores e cuidados. Os awa-guajá, por exemplo, caçam, matam e se alimentam da carne de vários animais silvestres. E, em muitos casos, é justamente dessa relação de caça que surge a proximidade e, consequentemente, o cuidado e a criação. É o caso da amamentação por parte das mulheres, que criam filhotes de macacos e de outros mamíferos, órfãos pela caça, da mesma forma que seus filhos humanos. Esses animais, porém, não são colocados em gaiolas, sendo criados soltos e, uma vez que atingem a maturidade física e sexual, gradualmente se afastam da aldeia e retornam ao interior da floresta.

Citar esse retorno é imprescindível para entendermos o conceito de prática sustentável: o lugar daquele animal até podia estar, mas não permaneceu vazio. Ao permitir (ou não impedir) o retorno dos animais à natureza, o equilibro das populações das espécies é mantido. Com acesso direto à mata, aquele animal ainda irá encontrar com outros da sua espécie para reproduzir e gerar descendentes, além de efetuar sua função ecológica, como a de dispersar sementes e de ser presa ou predador.

E aqui está o segundo exemplo de como a criação de animais silvestres por parte dos povos indígenas difere da nossa: não existe controle ou dominação sobre o comportamento selvagem desses animais, precisamente por não existir nenhum tipo de dicotomia entre casa e floresta, doméstico e selvagem. Os animais são criados dentro das aldeias, que por sua vez ficam dentro da mata.

Um terceiro e último aspecto particular na relação que os awa-guajá têm com seus animais de companhia é como esse contato “empodera” as mulheres indígenas. Uma vez em seus ombros, a vocalização de alarme dos macacos serve de alerta para que as mulheres se defendam de animais venenosos como cobras ou aranhas em seu caminho. E é a partir disso que atividades teoricamente predominantemente masculinas, como a caça, deixam de ser: mulheres se utilizam dessa interação com os animais para se protegerem durante as suas caminhadas e, assim, passam a também ser provedoras de alimento para a aldeia. Loretta A. Cormier sintetiza em uma frase:

Macacos que falam, mulheres que entendem”.

E a partir daqui, faço uma provocação: será que quem mora em alguma das grandes cidades do Brasil é capaz de entender o que um macaco tem a dizer? Será que eles teriam algo a dizer?

Em resumo, a relação que uma sociedade urbana tem com os animais é, desde o princípio, profundamente diferente da relação que os indígenas têm com a fauna. Por sinal, as diferenças estão justamente aí: na profundidade. Povos indígenas têm uma relação complexa, intrínseca e mutualística com a floresta e os animais.

Outros povos tradicionais

De forma similar, povos tradicionais como ribeirinhos e moradores de assentamentos rurais do Nordeste também têm com a fauna local relações que são multifacetadas e únicas – certamente incomparáveis entre si em alguns pontos, mas em muitos outros, análogas. De forma díspar, pessoas inseridas no esquema do capitalismo comercial e industrial, envolvidas na substituição da emoção pela razão e do mito e folclore pela Ciência, em outras palavras, integrantes da “sociedade moderna” tem uma relação com a natureza e os animais silvestres que é em pouquíssimos ou nenhum aspecto análoga àquelas que os grupos citados têm.

Na verdade, em muitos pontos é incomparável. A nossa relação com a natureza e os animais silvestres é comercial, é de propriedade, é utilitária e é influenciada, desde o começo, por uma dicotomia doméstico-selvagem. Nossa relação, por mais que muitas vezes a gente não queira admitir, é modulada pelo lucro, pelo luxo. E isso tudo é herança da colonização.

A beleza e o exotismo da nossa fauna foram e são mais uma entre as tantas riquezas exploradas pelos colonizadores desde que chegaram ao Brasil. Na era das Grandes Navegações, damas da corte europeia e de Paris não só impressionavam por seus macacos de estimação e seus chapéus e vestidos ornamentados com penas de araras, mas também por ostentar aves coloridas que “para surpresa de todos, ainda tinham o dom de falar.”

Imaginem só o status que alcançavam aqueles que apareciam portando um animal tão exótico quanto um papagaio, absurdamente colorido, e que ainda por cima “falava”? É inevitável perceber que o uso de animais silvestres como uma “muleta” de status e visibilidade é uma prática existente até hoje, vide alguns tipos de turismo de vida selvagem e a exibição de pets “não-convencionais” na mídia, por parte, na grande maioria das vezes, de integrantes da classe social alta que têm um gosto luxuoso pelo “exótico”.

Herança da colonização

É interessante também dizer que a caça, naquela época, representava um componente de conexão, uma certa relação de “empregabilidade”, entre os “nativos bárbaros”, no caso os indígenas, e os “colonizadores civilizados”. Ora, quem fazia o intermédio da caça e a entrega de espécimes de animais brasileiros para os colonizadores eram grupos de nativos, às vezes contra sua vontade. Afinal de contas só eles sabiam onde estava cada animal e como capturar. E de novo, essa é mais uma situação ainda presente nos dias de hoje: alguns integrantes de povos tradicionais, de comunidades menos favorecidas e de camadas sociais inferiorizadas acabam por ver, devido a uma falta de discernimento e oportunidades, a questão da apanha e venda de animais silvestres como uma fonte de renda conveniente e lucrativa, como uma forma de colocar comida na mesa de casa.

São essas pessoas que, pela maior proximidade a locais menos urbanizados ou pouco desenvolvidos, como áreas rurais próximas justamente a fragmentos de mata, sabem onde estão os animais. E são essas pessoas que, no fim das contas, acabam pagando o preço pela ostentação de quem quer ter um desses animais em casa como seu “pet exótico”. Preço esse que, de acordo com o interesse e conveniência de quem compra, pode significar ora ser penalizado sozinho pela Lei de Crimes Ambientais, ora ser usado de exemplo para justificar a existência e manutenção do comércio de animais silvestres como uma “cultura dos povos tradicionais”, viabilizando sua glamourização e permitindo que a demanda continue a crescer. Talvez, na verdade, o ciclo do comércio legal e/ou ilegal de animais silvestres para pets seja mantido, principalmente, não por quem apanha e vende, mas por e para quem pode pagar e mandar buscar.

Dizer que o comércio, a criação e a exportação de animais silvestres para fins de “companhia/estimação” é uma cultura natural do Brasil não é proferir uma mentira – mas também não é dizer totalmente a verdade. De qual cultura estamos falando? A qual “povo brasileiro” estamos nos referindo? O Brasil é múltiplo: têm várias culturas, povos, origens, crenças, Estados, biomas, uma gigantesca biodiversidade… E criar e comercializar são coisas diferentes. Logo, principalmente como educadores palestrantes e protetores do meio ambiente, precisamos começar a fazer distinções claras entre comércio e criação.

A afeição e a vontade de estar próximo e de ver e proteger os animais silvestres pode ser, e muito provavelmente seja, comum a todos os brasileiros. Talvez seja herança indígena. Ou além, talvez seja apenas uma herança humana, natural, evolutiva.

Mas o que acontece é que às vezes esse nosso instinto do coração, em meio às influências da mídia, da modernidade e do capitalismo, chega a nosso cérebro de forma distorcida. É como se a mensagem que nosso cérebro suscitasse fosse de “saudade da natureza” e a única resolução que a gente conseguisse processar fosse de “vou comprá-la”. É como se em vez de ir até (ou voltar para) a natureza, a gente achasse mais fácil tirar ela de lá. E isso, povo indígena, ribeirinho ou tradicional nenhum faz ou nos ensinou a fazer: é herança da colonização.

Referências
– Cormier, Loretta A. Kinship with Monkeys, The Guajá Foragers of Eastern Amazonia, Columbia University Press, 2008.
– Garcia, Uirá. Macacos também choram, ou esboço para um conceito ameríndio de espécie” – Rev. Inst. Estud. Bras. (69). Jan-Apr 2018.
– Toledo, Roberto Pomeu de. PAPAGAIO! A tradução ornitológica da nacionalidade. Piauí. Edição 1, 2006.
– Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres). Vida à Venda. Renctas, 2003.