Por Elidiomar Ribeiro da Silva
Biólogo, mestre e doutor em Zoologia. Professor do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), responsável pelo Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural
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Compondo a chamada nona arte, as histórias em quadrinhos (mais conhecidas como HQs ou gibis) têm grande apelo popular. Assim, estudos que visem propor formas de utilização acadêmica das HQs são sempre muito bem-vindos [1]. Como qualquer mídia da cultura pop, as HQs podem possuir detalhes e ideias sofisticados, sendo essas abordagens passíveis de aproveitamento de diversas formas, inclusive na sala de aula. A composição de um personagem muitas vezes recebe interessantes influências da vida real [2], o que favorece a sua utilização na academia.
Face à forte ligação dos insetos com o ser humano, não é de se estranhar que eles venham servindo como inspiração para personagens da ficção [3]. Entretanto, não são muitos os personagens inspirados em insetos que figuram entre os protagonistas das HQs, sendo Homem-Formiga e Vespa, da Marvel Comics, notáveis exceções. Muitas vezes, é exatamente entre os personagens obscuros, sem muito destaque, aqueles pouco conhecidos até mesmo pelos aficionados, que são encontrados temas biológicos interessantes. Um desses personagens de pouca fama, mas com muita história para contar, é Shathra, também da Marvel.
Habitante do Plano Astral, um mundo à parte da Terra, Shathra tem o aspecto de um grande marimbondo. Ela tomou conhecimento do Homem-Aranha quando o Cabeça de Teia saiu da vizinhança, onde ele normalmente caça os vilões, e se aventurou no Plano Astral. A partir daí, Shathra percebeu que o herói aracnídeo seria a refeição perfeita para seus filhotes famintos. Seguindo o cheiro de sua vítima escolhida de volta à Terra, Shathra empreendeu uma verdadeira caçada ao Homem-Aranha, sempre demonstrando clara superioridade física a cada batalha. Por jogar em casa, conhecendo cada cantinho de Nova Iorque, o álter ego de Peter Parker conseguiu escapulir do destino que a ordem natural das coisas parecia lhe impor [4].
A primeira aparição da vilã vespídea foi em 2001, na revista The Amazing Spider-Man #46 – Unnatural Enemies. E sua suposta morte foi em 2003, na revista The Amazing Spider-Man #48 – A Spider’s Tale. Se bem que, nas HQs, nunca se pode garantir que um personagem morreu mesmo…
Mas, além do jogo de gato e rato com o Homem-Aranha, o que torna o personagem Shathra tão interessante para os que gostam da Entomologia? Simplesmente por ela ser baseada em fatos reais. No mundo natural, muitos integrantes da subordem Apocrita (da ordem Hymenoptera) capturam aranhas e as oferecem à prole. Entre esses, estão os membros da família Pompilidae, como o famigerado e temível cavalo-do-cão, nome comum pelo qual são conhecidos os integrantes do gênero Pepsis [3], dentre outros. Também conhecido como marimbondo-caçador, o cavalo-do-cão captura aranhas, as paralisa com uma toxina, deposita nelas um ovo e enterra a vítima em um buraco no chão. Ao sair do ovo, a larva encontra vasto suprimento de alimento fresco – a aranha paralisada! Cerca de 750 espécies de Pompilidae ocorrem na região Neotropical [5]. Mas você, fã do Homem-Aranha, não precisa se preocupar. Como quase ninguém ouviu falar de Shathra e todo mundo conhece o Amigão da Vizinhança, a vilanesca parente do cavalo-do-cão claramente não conseguiu concretizar seu intento. Ao menos por enquanto.
Voltando ao cavalo-do-cão do mundo natural, o professor Eraldo Medeiros Costa Neto, da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, afirma que, face a esse comportamento de predar aranhas, já era de se esperar que tais vespas possuíssem uma tremenda representatividade cultural [6]. E isso se confirma plenamente. No Nordeste, por exemplo, são comuns as expressões populares “virar cavalo-do-cão” e “meter-se a cavalo-do-cão”, referentes a pessoas com comportamento violento [6] [7].
Também em crendices e na sabedoria popular esses vespões marcam presença. Há registros da crença de que se um cachorro perde o faro quando é picado por cobra, para lhe restituir o olfato deve-se colocar o pó de um cavalo-do-cão torrado na sua comida ou então esfregar o pó no próprio focinho do cachorro [7] [8]. E, no interior da Bahia, pernas do cavalo-do-cão servem para se fazer um chá para pretenso tratamento da asma [9]. Também na Bahia, esses insetos são ingrediente para se fazer a pemba-corredeira ou pemba-de-exu, utilizada em malefícios [10].
Mas a verdade é que o bichão caçador de aranhas é conhecido mesmo pela picada dolorosa, frequentemente incluída no rol da fama das maiores dores provocadas por um inseto [11]. Aí mesmo é que a gente vê que o Homem-Aranha escapou de uma boa.
Referências
[1] https://7815bced-15d6-460b-98d2-073f6006a337.usrfiles.com/ugd/7815bc_8aa98dd3e9fb45a2a6cf329cb82d05fd.pdf
[2] https://semanaacademica.org.br/artigo/os-personagens-de-hqs-como-estrategia-para-popularizar-entomologia-aquatica.
[3] Da-Silva, E.R. et al. 2014. Marvel and DC characters inspired by insects. Research Expo International Multidisciplinary Journal 4:10–36.
[4] https://marvel.fandom.com/wiki/Shathra_(Earth-616)
[5] https://www.portal.zoo.bio.br/media129.
[6] Costa Neto, E.M. 2004. O conhecimento etnoentomológico do cavalo-do-cão (Hymenoptera, Pompilidae) no povoado de Pedra Branca, estado da Bahia, Brasil. Revista Brasileira de Zoociências 6(2): 249-260.
[7] Lenko, K. & Papavero, N. 1996. Insetos no folclore. São Paulo, Plêiade/
FAPESP.
[8] Costa Neto, E.M. 2000. Introdução à Etnoentomologia: considerações
metodológicas e estudo de casos. Feira de Santana, UEFS.
[9] Costa Neto, E.M. 2002. The use of insects in folk medicine in the state of
Bahia, northeastern Brazil, with notes on insects reported elsewhere in
Brazilian folk medicine. Human Ecology. 30(2): 245-263.
[10] Costa Neto, E.M. 2002b. Manual de Etnoentomología. Manuales & Tesis SEA 4:1-104.
[11] https://twitter.com/obsnaturalistas/status/1210590888973369345.
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