Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Amigo leitor, normalmente tenho utilizado este espaço para falar de animais silvestres e dos fatores que afetam a prática de ações de soltura e reintrodução das diferentes espécies da nossa fauna. Porém, hoje vou contar uma história de gente, mais precisamente a de um caçador.
Moro em uma área florestal privilegiada na Serra da Mantiqueira paulista. Não amigo leitor, nada daqueles condomínios com gramados a perder de vista. Moro dentro da floresta mesmo, até porque era mesmo o sonho de infância desta bióloga que vos escreve. Usando termos do linguajar de hoje, quase me considero uma bióloga xiita, em jihad contra qualquer tipo de interferência ambiental, nas palavras do meu filho engenheiro civil, vivendo em um “mato total”!
Esta história começa com uma situação tão comum em dias sem pandemia. Recebo alguns amigos e, imagine, falta água! Um dos visitantes prontamente se propõe a ajudar e, depois de muito suar, descobre um cano partido! O cara que veio passear não só arrumou o cano como até limpou a caixa de água. Hóspede legal, não acham?
Durante a suadeira para achar o cano, conversamos. “Então, ele diz, vi que aqui tem jacus… Sabe eu caço… Jacu, macuco… Caço tudo o que foge de mim.” E eu ali, junto na tal suadeira do cano, só consegui dizer :“Ahhh…”
E para a conversa não ficar estranha, perguntei: “Mas você caça com quê? Espingarda?”
“O quê? Calibre 22?” O que ele responde: “Não, calibre 32.”
Aí, consigo articular um outro “ahhh…”. Ele, animado com a descoberta do cano partido, continua: “ Então, se você não ficar brava comigo, preparo um jacu à moda que é uma delícia!” Nessa hora, alguém chamou e a conversa terminou. Ufa! E o cara ainda por cima mora em um lugar remoto e preservado, pois pode caçar macuco.
Confesso que senti uma pequena pontada no coração quando ele mencionou macuco (Tinamus solitarius), uma espécie absolutamente ameaçada com números decrescentes de população. Depois, claro, me senti um pouco idiota, pensando na única soltura de um único macuco que tinha feito no passado. Tratamos o animal como se fossa a última joia da coroa. Colocamos a ave em um cercado especial, sem outros animais, até que por fim ele voou. Foi aquele tipo de soltura que você fica meio sem saber, pois apesar dos esforços de monitoramento, não localizamos mais o animal.
São nessas situações que você realmente pode avaliar o que é o fenômeno da caça. Não é aquela cena clichê do homem mau, partindo um animal vivo em uma armadilha com um laço de aço (há milhares de vídeos no YouTube; para quem tiver estômago, basta procurar), mas um cara comum, simpático e prestativo, que, por algum acaso, estava ali comigo procurando um cano partido. O problema é que sempre pensamos apenas no nosso prazer e a frase “caço tudo que foge de mim”, que ficou na minha cabeça, mostra como é fácil pensar de forma ingênua: o mal está sempre no outro e nunca naquilo que faço. Afinal, qual o problema de matar um macuco?
Essa história também nos mostra como a questão da caça está entre nós, no nosso cotidiano e não lá longe. Mostra também que algumas pessoas efetivamente se divertem matando, basta ver a questão da pesca amadora que aceitamos e vemos como algo normal um peixe se debatendo por oxigênio.
Nossa espécie tem mesmo uma fixação com a morte. A morte do outro ou da outra “coisa viva” é quase uma afirmação da vida de quem mata. Sem dúvida, nossa espécie é mesmo meio bizarra, pelo menos pelo ponto de vista desta bióloga que vos escreve e que insiste em soltar macucos, mesmo enquanto outros os cacem…
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