Por Daniel Nogueira
Biólogo, especialista em Ecoturismo e analista ambiental do Ibama. É o responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestre (Cetas) do Ibama localizado em Lorena (SP)
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“Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos a altura.
Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio.
Porque é só no vazio que o voo acontece.
O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas.
Mas isso é o que tememos: o não ter certezas.
Por isso, trocamos o voo por gaiolas.
As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.”
Rubem Alves
Os animais silvestres são peças importantes de uma coletividade, de algo maior que temos por dever legal e ético, cuidar.
Mas cada animal também é alvo de considerações individuais. Cada um é um ser vivo cuja existência tem que ser avaliada e cuidada individualmente.
É nesse espaço, que transita do coletivo ao individual, com cada uma dessas dimensões gerando situações de importância, que os centros de triagem e de reabilitação de animais silvestres (Cetras) devem pautar suas ações.
Também e principalmente para os casos dos animais que chegam aos Cetras vindos de cativeiro, advindos de apreensões ou de entregas voluntárias, é que podemos fazer algumas considerações interessantes sobre a formas possíveis de conduzir essa ação de cuidar.
Mas antes, uma reflexão: o que motiva o cativeiro de animais?
Eu acredito que seja o desejo por alguns de seus atributos. Estamos falando de alguns dos atributos que sobrevivem ao cativeiro (a gaiolas) e são motivadores, muitas vezes, para o cativeiro. A beleza, o canto (ou a fala!), o companheirismo ou outros de alguma forma sobrevivem à gaiola e, por isso, são qualidades vítimas do desejo humano. Contudo, mesmo que seja inegável que esses atributos estejam muito mais vivos e intensos nos animais livres, nesse caso, contudo, estão distantes daquele que os deseja. Então, o manter na gaiola é para que o gozo do atributo esteja à mão e ao deleite egoísta daquele que deseja. A gaiola é instrumento que permite a saciedade desse desejo.
Mas a gaiola ou os instrumentos de cativeiro em geral permitem uma forma de cuidado, exagerada para alguns, deturpada para outros. Sem dúvida, os instrumentos de cativeiro dos animais são muitas vezes usados como justificativa do cuidado.
Esse fato é muito comum quando se lê ou se ouve alegações de pessoas que tiveram aves apreendidas, apregoando que as mantinham em ótimas condições, em certos casos até dividindo o próprio alimento com elas. Nesse caso, para o argumento do encarcerador, o cativeiro como que perde o efeito negativo e passa a ser defendido de maneira positiva, já que, em muitos casos, prolongou o tempo de vida do animal cativo.
Mas esse cuidado priva os animais cativos daquelas necessidades e comportamentos que não sobrevivem à gaiola; mata tudo que se relaciona e que só é possível na vida em liberdade.
E é nessa situação que a esmagadora maioria dos animais chega até nós.
E é quando o cuidar se relaciona com o cativeiro que pode ocorrer uma situação dúbia, beirando a um dilema entre nós, que trabalhamos em Cetras. Temos que ter cuidado com os animais mantidos conosco. E durante um certo tempo dessa relação de cuidado, ela só ocorre com o animal preso, contido em um recinto, gaiola ou viveiro.
Mas os Cetras, no meu ponto de vista, não são locais de animais em cativeiro, como criadouros ou zoológicos. O cativeiro é algo incidental para os Cetras.
Da mesma forma, temos de entender que existe outra forma de cuidar, tanto para o bem coletivo quanto para os indivíduos. Temos que saber abdicar em ação, do cuidado na gaiola. Essa ação, muitas vezes, a esmagadora maioria das vezes, é o libertar. É esse percurso entre o cuidar nos cativeiros, mesmo que transitórios e temporários, e o decidir que é preferível para o coletivo e o indivíduo deixar de cuidar na gaiola e entender que o melhor cuidado é contar com a expressão dos comportamentos naturais dos animais. É o momento da decisão que o animal não precisa do cuidado da gaiola ou que esse “cuidado” (exagerado) passa a ser prejudicial a ele. Também é entender que aquele indivíduo pode viver sem nós e pode seguir seu extinto de sobrevivência.
Então, retomemos ao pensamento exposto no início deste artigo, que com certeza não foi feito para o cotidiano dos Cetras. Traz de maneira profunda aquela dualidade entre o medo de ousar (voar) para o incerto e a segurança da certeza. Peço respeitosamente a licença para tentar trazer o pensamento à reflexão sobre o cotidiano dos Cetras, quando diariamente temos que tomar a decisão para os animais, já que as grades os impedem de tomá-la por si só.
Os animais não têm os sentimentos ou racionalismos humanos tão bem apresentados no texto. Não têm terror ao vazio ou temem as incertezas como nós. Contudo, na ação de cuidar, podemos ser tomados, nós humanos, por esses sentimentos para com os animais que estão sob nossa responsabilidade.
Contudo, devemos saber que chega um momento (e esse momento é muito esperado) em que devemos prescindir de tudo e deixar por conta desse outro cuidado
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