Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Amigos leitores, sendo esse o nosso último artigo de 2021, termino o ano
com mais uma história do “mundo real da soltura” para nossa reflexão.
Tudo começa com filhotes de periquitos-ricos (Brotogeris tirica) resgatados. Logo de início, os animais já têm que vencer a etapa 1 do jogo da sobrevivência: isso significa que, após serem transportados tanto por quem fez o resgate como até o centro de triagem e de reabilitação de animais silvestres (Cetras) mais próximo, eles já viajaram pelo menos 50 quilômetros.
Etapa 2: animais sobrevivem e são destinados a outro Cetras por demanda. Essa é uma situação muito comum entre os centros. No nosso caso, os animais foram transportados por via rodoviária mais 300 quilômetros.
No segundo Cetras, os espécimes conseguem sobreviver à viagem e à mudança na alimentação e estão aptos a serem destinados para soltura. No dia escolhido, os animais são novamente “empacotados” e transportados até o local de retorno à vida livre. Lá se vão mais 80 quilômetros.
Ao chegar na área de soltura, uma região com cobertura vegetal adequada, o acesso ao local da soltura propriamente dito foi feito por trilha de “pesquisa” (tradução: estreita e escorregadia), com os animais sendo carregados em caixas por cerca de 30 minutos. Claro que, como solturas demandam planejamento complexo e envolvem vários atores, nem sempre se tem a “ajuda de São Pedro” e, neste caso, chovia! Na hora da abertura da caixa, os espécimes tiveram que ser “encorajados” a sair, ainda mais porque havia a questão da filmagem – não basta soltar, tem que registrar e divulgar. Um animal não quis sair de jeito nenhum. Ele, agora todo molhado, foi recolhido e transportado novamente pela trilha, mais 30 minutos. e depois para um Cetras, percorrendo outros 120 quilômetros.
Pelo adiantado da hora, pois já era noite, o animal foi mantido na caixa de transporte e recebeu água e banana. No dia seguinte, foi colocado em uma gaiola, recebendo medicação de suporte. Após quatro dias, ele finalmente parecia recuperado e foi transferido para um viveiro de aclimatação com outros do mesmo porte. Passados dois dias, seu comportamento indicava que não estava confortável naquele viveiro, embora sem apresentar sintomas específicos e estar com um bom escore corporal. Foi novamente transferido de viveiro, desta vez, para um mais protegido das variações climáticas e com outras espécies de menor porte. Passados alguns dias veio a óbito.
Em um mundo ideal, periquitos-ricos são bem longevos, podendo viver até 15 anos. Mas no mundo real, aquele indivíduo com peso corporal de cerca de 60 gramas, havia percorrido 550 quilômetros de transporte rodoviário e passado por pelo menos seis trocas de viveiros, sendo manuseado por humanos em todas as etapas do processo.
Moral da história: muitos críticos afirmam que soltura não funciona, que é “questionável”, que é “diarreia” ou que é “largança” de bicho, mas, de fato, alguns animais destinados a solturas têm, pela ação humana, um verdadeiro desvio de trajetória, quase semelhante à dos animais traficados. Eles até que resistem bravamente, mas é simplesmente demais, ainda mais para uma espécie do porte do periquito-rico! Apesar de nossa “compaixão às avessas”, o problema é o nível absurdo de interferência humana nos ciclos naturais. Portanto, mesmo pensando no bem, o grau de interferência é tal que o bicho não tem chance…
Que 2022 possa nos trazer bons projetos e ações que visem a recomposição e a regeneração florestal, diminuindo os efeitos perturbadores que nossa espécie insiste em impor sobre o meio ambiente, já tão maltratado. Quem sabe, no futuro, não precisemos mais “resgatar” periquitos-ricos porque eles simplesmente não vão querer e não vão precisar da “nossa ajuda”.
– Leia outros artigos da coluna SEGUNDA CHANCE
Observação: as opiniões, informações e dados divulgados
no artigo são de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es)