Bióloga com mestrado e doutorado em Zoologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A paleontologia foi o foco de sua pesquisa no doutorado.
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Os povos tupi do litoral brasileiro do século XVI eram, com alguma frequência, visitados por um ser mágico marinho que se alimentava dos que estivessem dentro d’água desatentos. Era um ser misterioso que causava terror e medo as pessoas. Seu nome era Ypupiara, o demônio d’água. Acredita-se que no ano de 1564, esse monstro foi encontrado morto e tal achado foi reportado pelo historiador e cronista português Pero de Magalhães Gandavo, acompanhado de uma descrição e ilustração:
“quinze palmos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes. Os índios da terra lhe chamam em sua língua Hipupiara, que quer dizer demônio d’água”.
Interessantemente, em outros lugares do mundo, descrições de criaturas marinhas muito parecidas ao Ypupiara se espalhavam levando terror ao coração dos marinheiros. Essas outras criaturas são conhecidas como sereias, metade mulher, metade peixe, e com seu canto poderiam encantar o mais bravo dos homens e o atrair para dentro d’água, onde encontraria seu fim.
Você deve estar se perguntando: a Lucy endoidou e esqueceu que a coluna Túnel do Tempo é sobre a fauna pretérita do Brasil? Por que ela está abordando lendas e mitos?
Calma meu querido leitor, que agora irei explicar o motivo. Uma coisa em comum com as regiões de origens dessas lendas é que em todas elas existem espécies de um mamífero aquático muito incrível chamado popularmente de vaca-dos-mares ou peixe-boi. Sendo assim, acredita-se que a origem dessas lendas está relacionada com o avistamento desse grupo de mamíferos chamados cientificamente de Sirenia (sim, uma referência direta às sereias!). Portanto, o Ypupiara encontrado aqui no Brasil bem como a descrição feita se encaixam perfeitamente a morfologia encontrada na espécie marinha chamada peixe-boi-marinho ou manati (Trichechus manatus).
Mas e os fósseis? Agora chegou a hora!
Bom, as espécies viventes dos Sirenia e uma boa parte das espécies conhecidas pelo mundo estão associados a ambientes marinhos costeiros ou transicionais entre os ambientes de água doce e salgada. Aqui no Brasil, temos uma espécie que é uma grande exceção nesse padrão, que é o peixe-boi que vive na Amazônia (Trichechus inunguis), predominantemente dulcícola (de água doce)! Por meio dos fósseis, somos capazes de entender um pouco melhor a história evolutiva desses animais e explicar como o peixe-boi “foi parar” lá na Amazônia!
Para entendermos essa conquista dos rios amazônicos, precisamos voltar ao Oligoceno-Mioceno (há cerca de 28 a 20 milhões de anos) no nordeste do estado do Pará. Lá, podemos encontrar as rochas atribuídas a Formação Pirabas, que foram formadas pela deposição de sedimentos em um paleoambiente marinho aberto com águas mornas, rasas e agitadas, incluindo áreas de lagoas, estuários e manguezais. Nessas rochas foram encontrados fósseis de Sirenia marinhos atribuídos aos gêneros Dioplotherium, Metaxytheriu, Sirenotherium e Rytiodus.
Durante o Oligoceno e adentrando-se pelo período Mioceno (23 à 5 milhões de anos), estudos apontam que, pela porção norte da América do Sul, a região atual da Amazônia foi afetada por um evento de transgressão marinha que, junto com o sistema hídrico da época, resultou em um grande sistema lacustre conhecido como Sistema Pebas, em que períodos de maior e menor salinidade se alternavam a depender da influência marinha no norte do continente.
Essa influência marinha intracontinental teve um impacto direto na diversidade das espécies aquáticas e semi-aquáticas da Amazônia atual, pois tal cenário permitiu que espécies até então estritamente marinhas se adaptassem a ambientes cada vez menos salobros e até mesmo totalmente dulcícolas. Hoje observamos essa transgressão nas inúmeras espécies de arraias amazônicas, nos botos, em algumas aves (como o ilustre exemplo do talha-mar – Rynchops niger –, que na Amazônia talha seus rios) e, claro, no próprio peixe-boi.
Nesse contexto adaptativo, foi recentemente reconhecido para o estado de Rondônia um fóssil com cerca de 40 mil anos de uma espécie extinta de peixe-boi evolutivamente relacionada ao peixe-boi amazônico atual. Essa espécie pertence ao mesmo gênero da espécie atual e foi nomeada como Trichechus hesperamazonicus. Esse fóssil é um indicativo de que mais de uma espécie de Sirenia chegou a habitar os rios amazônicos, mas que, no entanto, apenas uma delas segue viva atualmente.
No entanto, não há muito o que se comemorar, uma vez que o peixe-boi amazônico atual corre graves riscos de ser extinto graças a caça predatória, poluição e destruição da floresta Amazônica. Se não queremos que o peixe-boi-da-Amazônia atual não tenha o mesmo fim que as demais espécies fósseis aqui apresentadas, devemos, o quanto antes, começar a nos mobilizarmos e cuidarmos mais de nossas matas e animais. Além claro, de apoiar organizações como o Instituto Mamirauá que vem fazendo esforços no salvamento e cuidado dos animais necessitados da região Amazônica.
Espero que tenha gostado. Até o mês que vem!
Mais informações sobre os Sirenia:
– Associação Amigos do Peixe-boi (Ampa)
– Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
– Projeto Viva Peixe-boi marinho
– ICMBio: comportamento de peixes-bois
– Leia outros artigos da coluna TÚNEL DO TEMPO
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