Por Adriana Prestes
Bióloga, responsável técnica por áreas de soltura e monitoramento de fauna silvestre na Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba (SP) e secretária executiva do Grupo de Estudo de Fauna Silvestre do Vale do Paraíba, Litoral Norte e Serra da Mantiqueira
segundachance@faunanews.com.br
Tenho enfatizado aqui a ideia de que a palavra soltura deve ser usada para significar ações planejadas de translocação ou reintrodução de animais silvestres. Portanto “nada a ver” com escapes, abandonos e soltura de animais para finalidade de caça irregular – o caso exato dos javalis.
Nesse sentido, tenho disponibilizado nesta coluna protocolos, recomendações de boas práticas e relatos de casos sobre o que soltar, onde soltar e por quê.
Hoje, quero abordar os aspectos que estão envolvidos no momento exato da libertação dos animais.
O primeiro ponto é que é preciso considerar que quem faz solturas recebe, necessariamente, animais de várias procedências e que passaram por várias instituições e esse é um ponto que merece uma análise cuidadosa. Não existem protocolos unificados para as ações de reabilitação, muito menos uma simples e boa comunicação clara e transparente entre as diferentes instituições que atuam com fauna, assim o mais comum é receber animais para soltura acompanhados de declarações verbais do tipo: “está ótimo” e “voa que é uma beleza”
Claro que, no momento da soltura, não só a ave não voa como não está nada ótima! E mesmo para animais que venham acompanhados de laudos de exames laboratoriais, há que se perguntar que subsídios essas informações trazem para a soltura, uma vez que o item sanidade é apenas um dos aspectos que devem ser avaliados para uma ação efetiva de soltura. Outra consideração, antes de entrarmos na nossa história de soltura de hoje, é que existem espécies carismáticas e por isso consideradas mais importantes do que outras – que cada vez mais, por serem comuns e em maior quantidade, estão deixando de serem “aceitas” para soltura. Simples assim. E dessa forma, espécies que passaram por milhões de anos de processos evolutivos e adaptativos e que estão efetivamente conectadas com seus biomas são descartadas, deixadas de lado sem nenhuma justificativa técnica.
O resultado disso é que, na prática, esses animais tendem a receber menos tempo de cuidados em centros de triagem e de reabilitação (Cetas, Cras ou Cetras) e são soltas o mais rápido possível pois estão “ocupando” o lugar de “espécies mais nobres”. Receita perfeita para o que se chama de soltura desastrada, quase sempre resultando na morte dos animais soltos por fome e sede ou predação de domésticos!
Ok, voltemos a historinha de hoje, que envolve a soltura de uma coruja-orelhuda (Asio clamator).
Animal bonito, cobiçado como pet para os aficionados das aves de rapina, mas ainda relativamente comum em centros de triagem. A justificativa mais ouvida sobre isso é que se trata de filhotes e animais jovens, que estão aprendendo a caçar e ficam expostos à ação de pessoas que “resgatam”, indevidamente, os animais. Claro que alguns filhotes podem ter mesmo necessidade de resgate, como no caso de acidentes com animais domésticos ou até mesmo problemas ligados a visão, como catarata por exemplo. Outro motivo para o resgate de aves de rapina é que os animais economizam energia pois nem sempre conseguem caçar, assim alguns ficam mesmo fracos parados no chão e têm necessidade de ajuda – com sorte são encaminhados para quem sabe manejar esse grupo, mas como estou apontando, nem todos tem essa sorte…
Mas voltemos à coruja-orelhuda de hoje.
Considerando os tópicos abordados até agora, tenho adotado a atitude de buscar, mediante autorização de transporte emitida, os animais destinados à soltura nos próprios centros de triagem, pois a primeira impressão sobre o animal é a que fica. Lá estava então nossa coruja, bem animada, mas colocada em uma gaiola! Com animais destinados para soltura devem ser evitadas quaisquer situações que promovam a quebra e destruição das pontas das penas, pois embora pareça óbvio, quebra de penas e corte constituem “mutilações”. As aves trocam algumas penas por ano, portanto os efeitos da destruição extensiva de penas podem durar vários anos até que as aves apresentem empenamento aceitável para soltura. Resultado: “Por favor, podemos colocar a coruja na caixa de transporte que eu trouxe? Aí a segunda constatação, plumagem de animal jovem! Nesse momento, tenho um pequeno surto de ansiedade, pois animais jovens têm que aprender a procurar alimento. Então, será que nossa coruja estará mesmo apta para soltura?
Outro desafio para o momento das solturas é que não é incomum a soltura concomitante de várias espécies e a mistura de espécies que tem “menor interesse” para centros de triagem…Assim, nossa coruja com sua caixa de transporte foi posicionada no momento da soltura distante das demais espécies do lote.
Uma regra que tenho adotado para aves de rapina é a seguinte: não voou na hora, não vai voar. Talvez um assunto que ninguém enfatiza muito é que muitos animais passam por várias tentativas de soltura e, seja soltura branda ou direta, é preciso perceber esse momento do animal, o que dará mais chances de sobrevivência ao indivíduo. Soltura é, antes de mais nada, uma ação de paciência. Com o animal recolhido na caixa vem as considerações: não voou por quê? Na minha experiência, condições climáticas, em especial para corujas, devido ao tipo de empenamento, são decisivas para uma soltura exitosa. No nosso caso, havia previsão de mudança de tempo abrupta, com grande possibilidade de chuva. Ok!
Próxima etapa, albergar o animal temporariamente até a próxima tentativa. Nessa fase, é importante verificar de fato se o animal tem um score corporal adequado e se o empenamento está íntegro, portanto, foi necessário o manuseio do animal com equipamento adequado, luva especial para falcoaria, para avaliação do escore e a transferência do animal para um viveiro onde possa abrir as asas por completo e assim demonstrar a qualidade do empenamento.
O desafio seguinte é a alimentação, porque a essa altura o stress já estava alto e causando desgaste físico ao animal. Nossa coruja passou pelos testes de empenamento e de score corporal, mas rejeitou o alimento. No dia seguinte foi tentada alimentação forçada. Resultado, rejeitou o alimento também. Nessa hora todas as luzes vermelhas acesas, pois não aceitar alimento forçado só tem um resultado: morte do animal!
Outro aprendizado simples que tenho adotado: sempre é preciso ter um plano B! Nesse caso, mudança de viveiro para um maior e mais reservado para que o animal pudesse voar em uma distância maior. Animal voando bem, segunda tentativa de oferecer alimento. Nada ainda! No terceiro dia, nova tentativa de alimentação forçada, só que dessa vez com sucesso. Na sequência, abertura da porta do viveiro para tentativa de soltura branda. Somente no quarto dia, mesmo tendo passado toda a noite com a porta do viveiro aberta, pela manhã o animal saiu e voou espetacularmente em direção à mata! Ufa!
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