Museu Nacional: da dor a Fênix

Dia 2 de setembro de 2018. Domingo. Um calor danado no Rio de Janeiro, como sempre. No início da tarde, pouco antes das 13h, o Ceará havia feito um gol nos acréscimos do jogo, sacramentando a derrota do Flamengo, em pleno Maracanã: 1 x 0. Droga! Desgraça! O Flamengo acabou com o meu domingo. A tarde quente se arrastou, monótona. Nada poderia piorar, pensei eu. Ilusão. Quem dera fosse só isso.

Por volta das 20h, o amigo biólogo Marco Massao Kato, então funcionário do jardim zoológico e com o qual estávamos organizando o III Colóquio de Zoologia Cultural, me mandou por WhatsApp fotos de um incêndio. Um prédio com ares de imponência estava em chamas… um museu. O Museu Nacional!!!

Imediatamente falei com a minha esposa que, como eu, havia lá cursado pós-graduação. Ligamos a TV e, atônitos, vimos imagens que até hoje, cinco anos depois, eu reluto em acreditar. Um domingo terrível para nós, muito mais para os servidores e estudantes da instituição e, acima de tudo, para a Zoologia e a Ciência em geral. Na verdade, um domingo terrível para a História registrada da humanidade.

Primeira instituição de pesquisa do Brasil, o Museu Nacional é o maior centro de estudos antropológicos e de História Natural da América Latina, com coleções implantadas pela família real portuguesa. Já em seu decreto de criação, assinado por D. João VI, em 6 de junho de 1818, estava expresso que a educação, a cultura e a difusão da ciência seriam os objetivos da instituição [1]. Logo após a celebração do ducentésimo aniversário, o palácio do Museu Nacional foi quase totalmente queimado, causando a destruição de praticamente a totalidade das coleções de aracnídeos, insetos e moluscos, além de perdas inestimáveis nos acervos das áreas das Ciências Humanas [2] [3].

Dentre as perdas, estão exemplares pertencentes a séries-tipo, de extrema importância para estudos nos campos da taxonomia e da sistemática. São aqueles exemplares que servem de testemunho concreto para os novos gêneros e espécies. Trocando em miúdos, exemplares que sempre são estudados quando se tem alguma dúvida de identificação ou mesmo quanto aos relacionamentos de parentesco entre as espécies. Provavelmente trata-se da maior perda registrada da história da Zoologia [3].

Na minha percepção, diante dessa terrível ocorrência e da falta de proteção generalizada a nossos monumentos e à nossa história, a sociedade brasileira se comporta de modo omisso. Após a comoção pública inicial, a verdade é que, uma ou duas semaninhas depois, a situação do Museu Nacional caiu no esquecimento. Coisa, infelizmente, esperada em um país em que um escândalo semanal sucede o outro no noticiário e, por conseguinte, na boca do povo.

Em uma sociedade com cultura científica minimamente adequada, o interesse pela Ciência e pela História deveria começar em casa, com os adultos incluindo os museus nos seus passeios com as crianças. As escolas do ensino fundamental são essenciais para essa formação nas crianças [4]. Mas isso, ainda, não é a realidade do Brasil. Obscurantismo contemporâneo, intolerância política e religiosa, expectativa pragmática de resultados, submissão ao poder econômico capitalista e associação de progresso técnico a riscos ambientais estão entre os fatores que ameaçam a práxis científica. Nesse tipo de cenário, a popularização da Ciência é uma necessidade [5]. A tragédia do Museu Nacional escancara que ainda há muito por fazer até que tal consciência chegue à sociedade brasileira como um todo [3].

Um importante detalhe, entretanto, tem que ser realçado. Mesmo depois da tragédia, o Museu Nacional permanece com várias atividades em outros espaços, como exposições, ações diversas na Quinta da Boa Vista (em São Cristóvão, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, área aberta onde o Museu está localizado) e em escolas, além das divulgações das próprias pesquisas científicas realizadas pela instituição. Uma dessas exposições, “Arqueologia do Resgate – Museu Nacional Vive”, foi realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro da cidade do Rio de Janeiro, sendo objeto de estudo do trabalho de conclusão de curso da bióloga Rute Souza Peterli dos Santos, que tive a felicidade de orientar junto ao Bacharelado em Ciências Biológicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

A referida exposição mostra parte da reconstrução do Museu a partir de itens recentemente incorporados ao acervo e outros recuperados dos espólios do incêndio. No caso desses últimos, apesar de obviamente afetados pelo fogo, foi possível seu resgate como memória. O estudo acadêmico de Rute, posteriormente publicado sob forma de artigo científico [6], avaliou a importância para o público dos museus de ciências, dando ênfase ao Museu Nacional. Percebeu-se que, aos olhos dos visitantes, os museus necessitam de fiscalizações efetivas e investimento adequado para realização de medidas preventivas, o que não deixa de ser um alento.

E o Museu Nacional resiste. Tal e qual a Ciência, que ele tão bem representa e que vive de reconstruções, recomeços, reconsiderações. Entre servidores, estudantes e amigos do Museu Nacional, desde as primeiras chamas no fatídico domingo 2 de setembro de 2018, era comum escutar que a antiga casa de João VI, Pedro I, Pedro II, Leopoldina, Teresa Cristina e família ressurgiria das cinzas, igual a mitológica ave Fênix. Uma figura de linguagem que ilustrava bem mais do que o desejo, mas a certeza de toda uma instituição.

Como, às vezes, intenções metafóricas podem se transformar em realizações concretas (por que não?), finalizo esta singela homenagem à toda comunidade do Museu Nacional com um breve resumo da edificante história de uma “Fênix” real. E, ainda por cima, pertencente não ao reino das aves, mas ao mundo dos insetos.

Com vocês, a história do louva-a-deus Vates phoenix

Integrantes da ordem dos mantódeos (Mantodea), os louva-a-deus são insetos muito carismáticos e cheios de significados na cultura popular, tema já tratado por aqui [7] [8] [9]. Em tempos recentes, grande parte do reconhecimento do grupo tem a ver com as impressionantes realizações do Projeto Mantis, iniciativa sem fins lucrativos voltada para a pesquisa, conservação e descoberta dos louva-a-deus da Mata Atlântica e de outros biomas neotropicais. O projeto não só chama a atenção para um grupo (ainda) pouco conhecido de insetos, mas também destaca seu papel fundamental na dinâmica dos ecossistemas [10]

Vates phoenix (Mantidae) foi a primeira espécie descrita pela equipe do Projeto Mantis, em 2020 [11], além de ser o primeiro louva-a-deus do gênero Vates identificado na Mata Atlântica, conforme me contou Leonardo Lanna, explorador da National Geographic Society (Nat Geo) e líder do Projeto Mantis. Ainda nas palavras de Lanna, “É um louva-a-deus belíssimo, com uma pequena coroa e camuflagem entre folhas verdes e ramos de árvore que o torna quase invisível em nossas florestas”. É claro que o Leo, pelos laços emotivos que o ligam a esses insetos, é suspeito para exaltar a beleza do animal. Porém, como é possível se comprovar por uma das fotos que enfeitam o presente texto, não houve qualquer exagero e o bicho é realmente bonito demais.

Bom, conforme já deve ter dado para perceber, o nome “fênix” (phoenix) é uma homenagem ao Museu Nacional. Na descrição original [11], a etimologia do nome dado à espécie é explicada (tradução livre, via Google Translator, a partir do original em inglês):

“O epíteto específico refere-se à Fênix, uma criatura mítica e imortal que renasce das próprias cinzas após ser consumida pelo fogo. A nova espécie é uma homenagem ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que foi destruído durante um grande incêndio em 2 de setembro de 2018. Todo o acervo entomológico, representando mais de cinco milhões de exemplares, foi destruído, incluindo todos os exemplares de louva-a-deus. Apenas alguns espécimes de Vates emprestados no contexto deste estudo, incluindo a nossa nova espécie, sobreviveram ao evento. Vates phoenix, assim, tenta simbolicamente ligar o passado e o futuro do Museu Nacional, pois representa o renascimento da coleção de Mantodea e as nossas esperanças de renascimento de uma instituição ainda mais forte num futuro não muito distante”.

Leo me contou também que “este ano a série-tipo de Vates phoenix, enfim, voltou ao Museu Nacional, incluindo os exemplares que resistiram ao fogo por estarem conosco [no caso, com o Projeto Mantis]. A entrega foi emocionante! O primeiro holótipo de louva-a-deus a integrar a coleção, realmente representando seu renascimento.”

Aproveitei e perguntei ao Leo o que ele e os amigos de projeto sentiram ao saberem do incêndio no Museu Nacional. Ele contou que a sensação inicial foi de incredulidade, pois tudo parecia ser uma cena de filme, de um universo imaginário, sendo impossível segurar as lágrimas. Porém, quando eles entenderam, de fato, a magnitude do problema, imediatamente partiram para a ação, dentro do que lhes cabia. Entraram em contato com a Nat Geo e compartilharam tudo que estava acontecendo. Juntos, conseguiram que fosse aberto um edital especial para o Museu Nacional, algo que só tinha acontecido uma vez na história da instituição internacional. Uma equipe da Nat Geo realizou um workshop com 20 alunos do Museu, de onde saíram cinco financiamentos para projetos.

Desde minha mais longínqua memória infantil, a ida ao Museu Nacional e ao jardim zoológico, que também fica na Quinta da Boa Vista, sempre foram os programas favoritos para mim. Veio a vida adulta e, com ela, a oportunidade mágica de cursar mestrado e doutorado no Museu, aumentando ainda mais os meus laços afetivos com a instituição. A dor pelo incêndio é, para mim, comparável à perda de um ente querido. Mas nem de longe é comparável com o sofrimento daqueles que vivem o Museu no dia a dia e que, heróis que são, estão o ressurgindo das cinzas. Tal e qual a Fênix da Mitologia ou o Vates phoenix do Projeto Mantis. Assim, neste aniversário de 5 anos que ninguém queria comemorar, mas que é necessário demais que não seja esquecido, deixo aqui minha homenagem ao povo do Museu. Sim, o Museu Nacional está realmente renascendo das cinzas. O #MuseuNacionalVive!

Referências
[1] Pires, D.O. (ed.) 2017. 200 anos do Museu Nacional. Associação Amigos do Museu Nacional, 40 p.
[2] Kury, A.B.et al. 2018. Immolation of Museu Nacional, Rio de Janeiro – unforgettable fire and irreplaceable loss. Journal of Arachnology 46(3): 556-558.
[3] Da-Silva, E.R. 2018. Retrospectiva 2018: o ano de consolidação da Biologia Cultural – e jamais isso foi tão necessário. A Bruxa 2(6): 1-8.
[4] Freitas, V.P. 2018. A participação da sociedade civil e o incêndio do Museu Nacional.
[5] Santos, A.V. & Baiardi, A. 2007. Cultura científica, seu papel no desenvolvimento da Ciência e da atividade inovativa e seu fomento na periferia da Ciência. In: III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Universidade Federal da Bahia, 14 p.
[6] Santos, R.S.P. & Da-Silva, E.R. 2021. Preservação dos acervos em museus de Ciências: o caso do Museu Nacional e um olhar sobre a exposição Arqueologia do Resgate. Acta Scientiae et Technicae 9(2): 151-172.
[7] https://faunanews.com.br/insetos-no-folclore-brasileiro-o-talisma-da-coruja-e-outras-estorias/
[8] https://faunanews.com.br/etnoentomologia-entrevista-com-o-professor-eraldo-medeiros-costa-neto/
[9] https://faunanews.com.br/cavalaria-entomologica-insetos-com-nome-alusivo-aos-equinos/
[10] https://www.nationalgeographicbrasil.com/viagem/2022/10/rio-go-wild-e-projeto-mantis
[11] Rivera, J. 2020. A new species and first record of Vates Burmeister, 1838 from the Atlantic Rainforest (Mantodea: Vatinae). European Journal of Taxonomy 598: 1-25

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