Por Claudia Xavier
Bióloga, mestra em Zoologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e doutoranda em Zoologia (UFPA/MPEG). Trabalha no Laboratório de Aracnologia do Museu Emílio Goeldi
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Março é conhecido como mês das mulheres devido ao Dia Internacional das Mulheres, celebrado no dia 8. A origem da data vem do início do século 20 e tem como seio o movimento operário estadunidense, quando 15 mil mulheres marcharam pelas ruas de Nova Iorque reivindicando melhorias trabalhistas e direito ao voto. Apesar de ter sido oficializada pela ONU somente em 1975, a data já é celebrada há mais de um século. Em todo esse tempo de luta, tivemos várias conquistas, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido em um mundo com muitos privilégios masculinos.
Quando se fala em alguém cientista, de forma geral, a imagem que vem à cabeça da maioria das pessoas é um homem branco, mais velho e com seus cabelos brancos arrepiados, trajando um jaleco. Apesar do estereótipo, cientistas são bem mais que isso. Já parou para pensar sobre quais cientistas mulheres você conhece?
Ser mulher e cientista nunca foi algo fácil. No século 9º, final do Império Romano, em Alexandria, no Egito, viveu Hipátia, considerada a primeira matemática da história. Ela também estudou Astronomia e Filosofia. Infelizmente, foi brutalmente assassinada por fundamentalistas religiosos.
Nos séculos 19 e 20, viveu a química e física Marie Curie, responsável pela descoberta dos elementos químicos Polônio e Rádio e por estudos pioneiros em radioatividade. Devido a seus estudos, recebeu os prêmios Nobel de Física e de Química, sendo a única mulher até hoje a conseguir esse feito. Marie nasceu na Polônia, mas teve que se mudar para a França, pois naquela época não era permitido que mulheres estudassem no seu país de origem. Sua filha Irène Curie também foi ganhadora de um prêmio Nobel de Química por pesquisas com a radioatividade.
Na área de biológicas, a inglesa Rosalind Franklin é lembrada como uma das cientistas mais injustiçadas do século passado. Ela foi responsável por conduzir estudos pioneiros que permitiram a observação do formato helicoidal do DNA. Porém, os pesquisadores Maurice Wilkins, James Watson e Francis Crick tiveram acesso ao material de Rosalind sem permissão, o copiaram e publicaram seus resultados, sem dar nenhum crédito a ela. Posteriormente, ainda receberam um prêmio Nobel. Essa técnica machista de se apossar de ideias de mulheres, infelizmente ainda se faz comum e recebe o nome de Bropriating. No Brasil, também no século 20, a bióloga e herpetóloga Bertha Lutz foi uma grande ativista pelos direitos das mulheres e pela defesa do conhecimento científico. Hoje, o Prêmio Bertha Lutz é concedido pelo Senado Federal a pessoas que se destacam na luta pelo direito das mulheres.
Na Aracnologia, o padrão histórico se repete. No século 20, pesquisadoras de destaque na Taxonomia e Sistemática eram sempre associadas a seus maridos e não era comum que publicassem algum trabalho como primeiras autoras, como é o caso de Marie Louise Goodnight e Helia Eller Soares, que estudavam os simpáticos opiliões. Um ponto fora da curva é María Rambia Castells, que foi professora na Universidade de Barcelona. Pouca coisa se sabe acerca da vida de María, mas ela publicou mais de 60 trabalhos com opiliões, sendo grande parte deles como primeira autora.
Minha primeira referência na área, quando comecei o estágio no Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA), foi uma mulher: a Dra. Regiane Saturnino (atual professora na Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão – Uemasul), com quem tive a oportunidade de trabalhar por cerca de três anos. As referências femininas em diferentes grupos de aracnídeos se fazem mais presentes atualmente, porém ainda longe do ideal em termos de equidade e isso vem sendo comprovado estatisticamente pelo grupo Support Women in Arachnology (SWA – que significa “Apoie Mulheres na Aracnologia”) – Instagram e Twitter.
O SWA foi criado pelas aracnólogas Amanda Mendes, Ana Lúcia Tourinho, Bárbara Faleiro, Brittany Damron, Cibele Bragagnolo, Lidiane Salvatierra, Lina Almeida e Nancy Lo-Man-Hung para conectar biólogas contra o preconceito de gênero na academia. Atualmente, o grupo conta com mais de 30 integrantes e está realizando um levantamento mais aprofundado sobre a presença do viés de gênero na área e sugestões de diretrizes e políticas que possam diminuir essa desigualdade nos próximos anos.
Em 2021, tivemos uma vitória importante. A aracnóloga argentina Dra. Cristina Scioscia, que trabalha com as aranhas-papa-moscas (família Salticidae), foi eleita comissária para representar a comunidade zoológica na Comissão Internacional de Nomenclatura Zoológica (ICZN). O Código ICNZ rege a nomenclatura científica formal dos organismos animais e assegura que não ocorram divergências pelo uso incorreto do código. Cristina era a única mulher concorrendo com outros 9 homens, sendo que dos 25 pesquisadores já comissários, apenas um era mulher. A saga do viés de gênero cada vez mais exposta…
O machismo vem estruturado numa sociedade, patriarcal, o que faz existir em vários setores da sociedade um viés de gênero ainda que implícito. Dados recentes publicados pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) mostram uma realidade alarmante: apenas 33% dos pesquisadores no mundo são mulheres. No Brasil, as mulheres representam 54% das doutorandas e publicam 70% dos artigos científicos do país, embora recebam apenas 24% das bolsas em produtividade. Um estudo de Murray e colaboradores publicado em 2021 mostra que a taxa de aceitação de artigos de autores do sexo masculino pode ser 3,5% superior à do sexo feminino. E aqui nem mencionei outros recortes como maternidade e raça.
Todos podemos contribuir nessa luta. A criação de coletivos como o SWA tem sido de extrema importância para o combate a esses vieses e o conhecimento dos direitos e reconhecimento de abusos na academia. É preciso mais representatividade, mudança na cultura científica e mudança metodológica nas avaliações. A Ciência precisa ser diversa e mais inclusiva para ser uma Ciência melhor.
Encerro este artigo com uma frase da ictióloga estadunidense Rosa Eigenmann: “Em Ciência, como em todos os lugares do domínio do pensamento, as mulheres deveriam ser julgadas da mesma forma que os homens. Seu trabalho não deveria ser encarado simplesmente como ‘bem-feito para uma mulher’”.
Referências
– 15 mulheres cientistas para inspirar crianças. Disponível em: https://leiturinha.com.br/blog/mulheres-cientistas/
– Como um grupo de aracnólogas está combatendo o machismo na ciência. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/09/13/como-aracnologas-estao-combatendo-o-machismo-na-ciencia.htm
– Como vencer o preconceito de gênero estruturado e persistente na academia científica? Disponível em: https://ciencianarua.net/como-vencer-o-preconceito-de-genero-estruturado-e-persistente-na-academia-cientifica/
– Mesa redonda sobre “Viés de gênero na academia”, como parte das atividades da aula inaugural do período letivo 2022.1, do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Conservação – PPGBC/UFPI. Disponível em: https://youtu.be/5UNW3xLmkVQ
– Murray, D.S., et al. 2021. Author-Reviewer Homophily in Peer Review. BioRxiv. doi: https://doi.org/10.1101/400515
– O que é o Dia Internacional das Mulheres e como começou a ser comemorado? Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60646605
– Simpósio Diretrizes de Enfrentamento do Viés e Preconceito de Gênero na Aracnologia no VI Congresso Latinoamericano de Aracnología – 2020. Disponível em: https://youtu.be/j6vp-nvpVL4
– UNESCO Science report 2021. Disponível em: https://www.unesco.org/reports/science/2021/en
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